Conversas entre Miguel Goulão e Pedro Amaral

A associação que representa os interesses dos industriais de recursos minerais reinventou a comunicação, de modo a valorizar um dos setores que mais valor acrescentado bruto geram para o país. Focado na inovação tecnológica, no desenvolvimento de novos paradigmas e na criação de um selo de qualidade para a pedra, o setor vive dias de mudança. Miguel Goulão, vice-presidente da ASSIMAGRA, fala-nos deste novo rumo, numa conversa em que também participa Pedro Amaral, professor universitário e investigador com trabalho realizado na área da inovação e e tecnologia aplicada ao setor da pedra natural.

Na sua opinião, qual o potencial da utilização da pedra na construção civil?

MG – É total. O produto pedra natural pode estar presente em todos os locais, seja numa simples habitação, num edifício de escritórios ou num edifício industrial. A pedra tem ganho um conjunto e eficiências importantes para que esse desiderato possa, de fato, ser cumprido.

Quando fala em eficiências importantes, refere-se a características técnicas desenvolvidas para além dos usos estéticos?

MG – Sim, até há largos anos a pedra era utilizada quase exclusivamente com uma componente decorativa. Hoje em dia, também graças ao que tem sido o envolvimento do sistema científico e tecnológico, a pedra também é valorizada e utilizada pelas suas características físicas e mecânicas e, por essa via, consegue até obter um maior valor em termos de preço final. Aliás, esse é um objetivo que o setor tem tido ao longo destes últimos anos e que ainda não está totalmente cumprido. Quando adquirimos um relógio preferimos o original e não a cópia... no nosso setor, quando comparado com a cerâmica, muitas vezes as pessoas preferem a cópia ao original. É preciso compreender as razões para que tal aconteça e encontrar os mecanismos necessários para o setor passar a ter uma efetiva valorização, para que o original possa valer mais do que a cópia.

Por que é que acontece assim, na sua opinião?

MG – Para já, tem a ver com a própria relação com o consumidor/utilizador. Quando compramos uma casa, quase todas as componentes vêm com um manual de instruções. A pedra, sendo um produto natural, tem um comportamento diferenciado dependendo do local onde é aplicada, mas a maioria das pessoas não o compreende, portanto é preciso explicar-lhes qual é o comportamento da pedra e como a devemos tratar. Isto foi a lacuna que o nosso projeto Stone.pt, de que podemos falar mais à frente, pretendeu preencher, ou seja, essa lacuna de relação e de informação com o consumidor, para mais quando, no mundo atual, cada vez mais as pessoas investem na reformulação da casa onde vivem. E esse processo de reformulação faz com que o fator de decisão, que no passado estava muito orientado para o arquiteto ou para o engenheiro, para quem projetava a obra de uma forma mais global, passe agora a ser mais orientado para o indivíduo que, ao decidir reestruturar a sua habitação, vai estar mais presente na decisão e na escolha dos materiais.

Houve uma transferência de target, do profissional para o consumidor?

MG – Nós temos obrigatoriamente que nos relacionar mais com os consumidores. Sem que isso aconteça, muito dificilmente vamos conseguir vencer esta batalha de que lhe falava há pouco.

PA – Para que se perceba esta valorização da pedra no final da cadeia de valor, antigamente, o que era mais notório do ponto de vista da rocha era a sua utilização na perspetiva ornamental, daí a valorização do mármore, do granito, dos exóticos, etc... De repente tivemos um shift muito no lado do design. Os edifícios passaram a ser desenhados com estereotomias muito particulares, com pedras de dimensões diferentes, com variações geométricas onde a lógica relacionada com a coloração e com a própria textura da pedra começou a ter uma influência muito significativa. Neste contexto começaram a emergir os calcários e outros materiais de textura mais uniforme ou, mesmo que o não fossem, que conseguissem conjugar melhor com este tipo de lógica de design que despontou na perspetiva da arquitetura. Daí que, durante algum tempo, os mármores tivessem uma quebra significativa, pois na realidade não respeitavam estas idiossincrasias, esta ideia de o futuro passar mais por este tipo de design e menos pela lógica textural e ornamental da pedra propriamente dita. Os mercados do Médio Oriente e norte-americano (este último mais no uso para interiores) sempre valorizaram muito isto e agora começa a haver um novo balanço, começamos a perceber que já se consegue balancear as duas  dimensões mas isso também se deveu muito ao trabalho entretanto feito em termos de marketing e comunicação.

Quais as vantagens desta utilização, nomeadamente ao nível da competitividade e da sustentabilidade?

MG – Estamos a falar de um setor, a indústria extrativa, que em termos de valor acrescentado bruto, aquilo que na minha opinião mais importa, só é ultrapassado pelas telecomunicações. Claro que depois podemos falar de

dimensões mas isso é outro campeonato. O nosso desejo é que este valor setorial possa ser ainda mais efetivo. Esta questão da sustentabilidade é um fator determinante, embora não nos possamos esquecer que estamos presentes em territórios de muito baixa densidade, onde, eventualmente, se lá não estivermos, nenhum outro setor estará. A sustentabilidade é determinante para um setor obrigado a uma responsabilidade social para além do seu próprio tempo de existência. Quero com isto dizer que, sendo este um setor que contribui para a coesão territorial, cria emprego, é findo, pois tem um princípio, um meio e um fim, a sua responsabilidade na componente sustentável é a de pensar os territórios em conjunto com quem tem a responsabilidade de os ordenar e decidir que uso dar-lhes no fim da vida útil de exploração. É hoje possível dar esta sustentabilidade ao setor, diria eu um certo ‘sex-appeal’ que não teve nos últimos anos, pois sobre ele sempre houve aquela imagem negativa do ‘buraco’ que fica e perdura. Porém, se tivermos a imagem de um setor que consegue usar o território e a seguir valorizá-lo e dar-lhe um uso adequado, temos aqui a sustentabilidade garantida.

Pelo que me está a dizer a pedra pode tornar-se a segunda indústria mais ‘sexy’ do país, a seguir aos  sapatos?

MG – Pode ser. Se conseguirmos este objetivo, pode ser como diz. Nós temos um país muito desequilibrado e todos os dias ouvimos os políticos a dizerem que temos que pugnar pela coesão territorial mas, na prática, vimos que a maioria dos investimentos de grande porte em Portugal vão todos para o litoral. Se não houver investimento no interior é impossível fixar as pessoas. Mas dou-lhe razão, este setor pode ter o ‘sex-appeal’ que a indústria dos sapatos já tem.

O potencial dos recursos minerais portugueses é mais premente para o mercado interno ou a nível internacional?

MG – Internacional, sem dúvida. O setor no seu total fatura, por ano, 1,4 mil milhões de euros. Exportamos cerca de 900 milhões de euros, dos quais 360 milhões são rochas ornamentais. Em termos de capitação, Portugal é o segundo país produtor em termos mundiais nesta área, só atrás da Itália. Se fizermos a conta de outra forma, somos o oitavo, o que também é notável, pois estamos a comparar-nos com países da dimensão da China ou da Índia. É verdade que temos empresas de pequena dimensão mas todas juntas conseguem esta importância.

Pedra já trabalhada e com valor acrescentado ou em bruto?

MG – A componente que não se refira à rocha ornamental é em bruto. Esta rocha ornamental não é na totalidade trabalhada mas em larga percentagem já incorpora uma intervenção posterior à extração e, por isso, com uma valorização efetiva. Em Portugal sabemos trabalhar bem a pedra, o que nos dá um estatuto de relação com o exterior que temos aperfeiçoado e potenciado. As nossas exportações nos últimos 15 anos cresceram cerca de 68% e isso é sobretudo fruto da nossa capacidade de trabalhar bem a pedra e os projetos. Como entretanto a tecnologia portuguesa evoluiu, é hoje possível nas empresas portuguesas fazer trabalhos à medida do que o cliente deseja e isso dá-nos um tremendo valor acrescentado.

Quais são os principais mercados de destino e os segmentos mais relevantes?

MG – Exportamos para 116 países diferentes, mas o nosso principal mercado é a França, um mercado tradicional, depois a China, um mercado com cerca de 15 anos e que continua a ter uma componente muito importante de venda em bruto, a Arábia Saudita, que ainda é o principal mercado para os mármores, a Alemanha e a Espanha. Em termos de segmento, os calcários têm hoje uma maior importância em relação aos mármores e granitos. Valem cerca de metade do mercado.

Como descreveriam o estado-da-arte da investigação científica e tecnológica no setor da pedra natural?

PA – Passámos de uma fase onde a ideia era sempre como trabalhar a pedra na perspetiva pura e dura da dimensão, ou seja, cortar muito, rápido, igual e em cadências muito elevadas, para uma situação em que tudo passa pela customização e personalização. Esta modernização da indústria ocorre por ter existido um  investimento e uma investigação muito profunda na lógica daquilo que são as capacidades tecnológicas de trabalhar a pedra. Passou a haver capacidade de fazer coisas que antes não eram possíveis. No entanto, essa primeira fase de investigação trouxe apenas a tecnologia já existente em outros setores para adequá-la à indústria da pedra. Atualmente, vivemos uma nova mudança de paradigma relativamente à utilização da pedra, pois já não basta o uso direto de outra tecnologia. Temos de trabalhar a pedra na perspetiva ornamental ou dimensional, na perspetiva da seleção ou da sua conjugação com outros elementos e outros materiais, muitas vezes dando-lhe uma alteração ou uma utilização técnica diferente do que era uso. Dou-lhe um exemplo: Se passarmos a utilizar a pedra como um elemento que absorve calor, é possível utilizá-la como fator de eficiência energética para um edifício. Já não basta olhar para a pedra numa perspetiva meramente ornamental, mas começamos a olhar para outras  dimensões e isso trouxe-nos tantas alterações do ponto de vista do rumo a seguir que também aqui houve uma mobilização do setor no sentido de atacar de frente estes novos paradigmas da indústria 4.0 e de toda a lógica da cadeia de valor e da integrabilidade dessa cadeia de valor. Não serão muitos os setores que conseguiram encontrar um conjunto de empresas que competem entre si mas colaboram no sentido de integrar essa mesma cadeia de valor, desde a componente arquitetura e da utilização do BIM até à comunicação entre os equipamentos e as características dos materiais, ou até à pessoa que faz o input de um novo produto e que alguém consegue ter a resposta em relação a esse produto. Tudo isto começa a ser uma realidade. Já estamos a chegar a um estado da arte que outros setores já não têm para nos dar. Em alguns casos já não há possibilidade de importar de outros setores um qualquer sistema de digitalização de imagem ou um qualquer sistema de corte com determinadas características, pois isso já não existe no estado da arte de outras tecnologias e nós tivemos que ser o driver desse conhecimento e desse estado da arte.

O setor teve necessidade de desenvolver tecnologia “proprietária”?

PA – Sim, isso está a começar a verificar-se. Temos empresas ligadas à parte das máquinas e dos equipamentos nesta área que são hoje líderes em termos de algumas tecnologias no mercado.

As tecnologias de que fala têm sido “exportadas” para outros setores, eventualmente para outros usos que não sejam a pedra?

PA – Para ser realista, direi que ainda não mas começa a haver uma tendência interessante. Algum trabalho tecnológico e científico ao nível da algoritmia e comunicação nas chamadas plataformas ciberfísicas já começa a despertar interesse de aplicação em outros setores. Mas também é de registar o aumento de interesse por parte da comunidade científica em compreender melhor as características da própria pedra. Há vários exemplos em Portugal, desde logo a Universidade de Évora, o próprio IST, a Faculdade de Ciências e muitas universidades que estão interessadas em conhecer a fundo as características da pedra para as poder valorizar mais acima na cadeia de valor. Olhando para a rocha ornamental do ponto de vista da sua composição, temos a noção clara daquilo que ela pode ser valorizada em outras indústrias, casos da farmacêutica ou da cosmética, já para não falar dos cimentos que podem fazer o aproveitamento das chamadas matériasprimas não valorizadas.

De que forma esse conhecimento a que se refere tem sido transferido para a indústria?

PA – Há uma tentativa grande de fazer essa partilha e há muitos exemplos de projetos colaborativos entre a universidade e a indústria no sentido de realizar essa transferência. É evidente que compreendo que, da parte de indústria, exista também uma necessidade de ter recursos humanos e técnicos para poder absorver esses conhecimentos e dar-lhes utilidade. A crise em Portugal acabou por aproximar mais a engenharia e a ciência nas empresas, na perspetiva da empregabilidade, pois hoje as empresas preocupam-se em contratar alguém que não vá só para cortar a pedra mas que possa aplicar outros conhecimentos, até porque as máquinas ou a logística estão cada vez mais complexas.

Com o reconhecimento do cluster dos recursos minerais, o que podemos antever para o setor da pedra natural em termos científicos e produtivos?

MG – A nossa grande ambição é que o setor conheça um plano setorial e que haja claramente uma estratégia. Pensamos que até 2025 possamos valer mais de 1% do PIB português, em termos de exportação, mas julgamos que o seu valor económico possa crescer para valores muito superiores, na medida em que aumentemos a nossa capacidade de valorização da matéria-prima. Temos uma proposta concreta entregue ao Governo nesse sentido e que passa, de uma vez por todas, pelo levantamento dos nossos recursos na perspetiva do que existe mas sobretudo na perspetiva de valorização, de saber quanto vale cada recurso, e temos muitos. Isto é tão importante quanto verificamos que em alguns territórios criámos incompatibilidades para o aproveitamento desses recursos porque ignorámos esse conhecimento. Eu percebo que para muita gente que faz ordenamento de território em Portugal seja preferível o desconhecimento, pois assim ordena como quer. Quando há conhecimento e quando há estudos que comprovam a existência de valor económico já é diferente. É este objetivo que o cluster dos recursos minerais tem que cumprir. Diria até que é uma tarefa patriótica, pois os países têm que valer na sua primeira essência pelo seu território e nós não temos esse exercício feito. Por que razão existe uma reserva agrícola nacional e existe uma reserva ecológica mas não existe uma reserva geológica? Não temos que ser protegidos? O nosso recurso existe onde existe, mas se construírem lá um prédio  deixa de ser aproveitável, não podemos fazer a exploração ao lado do prédio... Outro aspeto estratégico é a ambição que temos no mar. Com a nova plataforma intercontinental vamos ter uma dimensão superior ao Brasil em termos territoriais, mas é uma dimensão num território completamente desconhecido, embora pleno de recursos e, por isso, é natural que esta visão de um novo território também tenha que estar presente no cluster. Isso vai obrigar a um esforço hercúleo de todos, das  universidades por exemplo, pois o conhecimento que hoje produzem está desadequado à realidade deste novo território.

PA – Um exemplo interessante que se relaciona com esta questão do ordenamento tem a ver com a rocha de Lisboa, extraída em Sintra, que é o Lioz. Estamos a falar da capital, o lugar onde o maior número de reabilitações ocorrerá e não vamos ter disponível um dos principais recursos geológicos para fazer essa mesma reabilitação, dado o atual estado do planeamento. Por um lado, o espaço de eventual extração já foi ocupado, por outro, os locais ainda disponíveis estão estudados e identificados mas não há um plano para a sua exploração económica, no mercado interno e também na exportação, pois há mercados que adorariam receber este tipo de pedra natural com grande valor acrescentado.

O que é que o setor da pedra pode ir buscar offshore?

MG – A pedra ornamental nem tanto, pois não terá valor em termos de produto final que justifique o investimento necessário para o irmos buscar ao mar. No caso do tungsténio já é diferente e temos grandes reservas ao largo dos Açores. Acontece é que uma das maiores empresas mundiais de pesquisa está há 12 anos a aguardar por uma licença de pesquisa...

Falando agora dos projetos mais recentes da ASSIMAGRA. Como é que estão a ser desenvolvidos?

MG – A Academia PME tem a ver com o conceito de que o conhecimento é a nossa principal riqueza. Havendo uma lacuna muito forte nas empresas, em termos de acesso a esse conhecimento, não podíamos deixar de desenvolver este projeto que terá início no corrente ano, no sentido de dar melhores ferramentas às empresas para que elas possam ser mais competitivas. Se o desenvolvimento ao nível da inovação já é uma realidade ao nível do setor, para que haja depois o perfeito convívio com essa inovação é preciso que a formação.

Em que fase de implementação se encontra a marca StonePT? Quais as garantias que este selo dá ao consumidor?

MG – O Stone.pt teve um período relativamente longo de gestação e só agora começou a haver empresas a implementar a fase de controlo. Não se trata apenas de uma marca, é um selo de qualidade e isso obriga a que, por parte das empresas, haja um compromisso para um conjunto de requisitos que têm que ser cumpridos, como por exemplo os relacionados com o controlo do processo industrial, o próprio conhecimento da pedra ou a certificação da origem. Nós podíamos fazer aplicar um qualquer ISO, mas como somos um setor muito específico entendemos que tal era redutor e desadequado. Tínhamos que criar algo que servisse melhor o setor e essa tarefa foi complexa. Neste momento temos 21 empresas em processo de implementação, três destas já a utilizar o selo StonePT.

Miguel Goulão é vice-presidente da ASSIMAGRA, a associação que representa os industriais dos recursos minerais de Portugal. Chefe de gabinete nos XV e XVI governos constitucionais, nas áreas da Ciência e Ensino Superior e Ambiente e Ordenamento do território, respetivamente, Miguel Goulão foi administrador, gestor e presidente de conselhos de administração de várias empresas, destacando-se em funções executivas de associações empresarias, casos da ARICOP, AHRESP, CTP e agora da ASSIMAGRA.

Pedro Amaral é professor auxiliar no Instituto Superior Técnico (IST). Doutorado em Engenharia de Materiais pela Universidade Técnica de Lisboa (IST), é autor de numerosos artigos em revistas científicas internacionais e tem efetuado trabalho de investigação de interesse para a indústria da pedra natural, nomeadamente relacionados com ferramentas e processos de corte. É co-autor, entre outras publicações, de um manual técnico para aplicação, uso e manutenção de rochas ornamentais.

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