Conversas entre Rita Moura e Maria de Lurdes Antunes

Entrevista e fotografia por Cátia Vilaça

Maria de Lurdes Antunes e Rita Moura conversam sobre o presente e o futuro da reabilitação urbana, integrando-a com a segurança estrutural, a eficiência energética e as preocupações de cariz ambiental. Deixam ainda algumas ideias sobre a forma de compatibilizar estes aspetos com a economia de custos.

A reabilitação nos grandes centros urbanos (Lisboa e Porto) tem sido feita à custa de um grande impulso do turismo. Em 2016, 91 por cento dos pedidos de licenciamento dirigidos à Porto Vivo – Sociedade de Reabilitação Urbana eram para apartamentos turísticos. Do vosso ponto de vista, estamos a voltar a afastar os habitantes do centro da cidade? Que consequências isso terá para a malha urbana a longo prazo?

Rita Moura (RM): Não há dúvida que é necessário repovoar os centros urbanos, e que nós podemos ajudar a que isso aconteça. Quais os condicionalismos para comprar uma casa no centro de Lisboa? Além dos valores da construção, temos o problema do parqueamento. Há edifícios devolutos nos centros históricos que poderiam ser aproveitados para autossilos, porque fazer parques aumenta muito o preço da construção. Por um lado, é preciso assegurar o acesso a esse bem a quem vai comprar uma casa, mas ao mesmo tempo garantir que esse bem tenha um preço comportável. Nós, engenheiros, temos de procurar soluções cujo custo vá de encontro à disponibilidade dos nossos cidadãos, genericamente mais reduzidas do que a dos restantes europeus. Neste aspeto, o LNEC, as empresas e as universidades que trabalham nesta área podem ajudar a encontrar soluções economicamente aceitáveis. O repovoamento dos centros históricos é fulcral e parece-me que o turismo só continuará a crescer se houver um justo equilíbrio entre turistas e população local, porque isso é que torna a cidade atrativa.

Maria de Lurdes Antunes (MLA): Não é desejável que o centro histórico seja só dos turistas, mas o facto é que há uns anos estes espaços estavam muito degradados. Em Lisboa, o boom do turismo conduziu a que tenhamos hoje a cidade reabilitada. Por outro lado, as pessoas que investem no património também têm de ganhar dinheiro. Naturalmente,  terá de haver apoios das autarquias para captar os habitantes. O turismo também não vive só de confinamento, também é necessário que haja interação com os locais.

RM: Tecnicamente, o que se percebe é que a reabilitação não está a ser feita com o nível de qualidade desejável. O LNEC tem desenvolvido imenso trabalho nessa área e temos aqui todas as infraestruturas de investigação para estudar este tipo de intervenções, e elas estão a ser feitas de forma nem sempre adequada.

É uma questão de custos?

MLA: Reabilitar não é só pintar. É preciso fazer a reabilitação do que se vê e do que não se vê. As pessoas quando compram muitas vezes não estão alertadas para esse aspeto porque os edifícios têm uma aparência bonita e arranjada. Por outro lado, os promotores precisam de vender e poderão aceitar uma solução mais barata que não contemple a parte da segurança, do conforto ou da qualidade, só o aspeto exterior. Deveria haver mecanismos como há para outras áreas. Por exemplo, nós temos de fazer selos para a eficiência energética. Se um promotor conseguir vender melhor o seu produto porque tem um selo de qualidade em relação à segurança sísmica ou em relação à qualidade da caixilharia, talvez adira à ideia. Depois, também há a cultura de prevenção do risco e segurança que as pessoas muitas vezes não têm. Eu acho que esses mecanismos poderiam ajudar muito a melhorar o tipo de construção e de reabilitação.

RM: Muitas vezes, esses selos encarecem o preço por metro quadrado da obra, ou seja, temos de ser criativos na forma como encaramos esse tipo de situação. Eu sou de opinião de se optar, ao invés do selo, por um estudo de amostragem, por tipo de edifício, de modo a analisarmos em detalhe uma determinada tipologia de edifício. Isto permitir-nos-ia saber que, com determinada especificidade e com determinados pormenores construtivos, vamos obter uma boa performance em termos térmicos e um bom desempenho em termos estruturais. Estudamos a fundo um objeto e extrapolamos para todos os outros. Desta forma, estaremos a reduzir o preço desse selo e a fazer um estudo muito mais detalhado. Neste momento está a ser exigido um selo caso a caso, e isso é muito penalizante em termos de custos.

MLA: Eu estava a pensar no próprio custo da construção, que aumenta. Se tivermos de reabilitar um edifício e ter atenção à questão estrutural, vamos gastar mais dinheiro. Como justificamos que este imóvel seja mais caro do que o do lado? É algo que não se vê, por isso o selo funcionaria como garantia. Não tem de ser obrigatório, mas poderia ser uma mais-valia para quem investe no património.

RM: No caderno de síntese tecnológica que a Plataforma Tecnológica Portuguesa da Construção desenvolveu, existe um capítulo dedicado ao reforço sísmico com preços de referência, que não são assim tão elevados face aos acabamentos do edifício. Claro está que não é para repor o nível de segurança mas para reduzir a vulnerabilidade sísmica de edifícios antigos. Há a falsa ideia de que o custo é elevadíssimo quando não é verdade. Com estes princípios, consegue-se reduzir a vulnerabilidade sísmica numa determinada percentagem, o que já não é mau.

MLA: Eu acho que a questão também passa por educar as pessoas para a importância destas coisas, para que estejam disponíveis para gastar aquele pequeno valor adicional, que pode realmente ser pequeno se as soluções forem adequadas e bem pensadas. A nossa cultura vai muito no sentido de que não vai acontecer.

Em breve, também será necessário reabilitar os edifícios de betão dos anos 80-90. Quais são as prioridades? Passar à prática estas ideias?

MLA: A estrutura desses edifícios é completamente diferente da dos edifícios históricos, e portanto as soluções serão diferentes quando falamos, por exemplo, do risco sísmico. Em relação a outras questões, como os acabamentos, eu acho que as coisas devem, de uma forma geral, manter a sua personalidade. Nessas edificações também há problemas de conforto, que não existem, alegadamente, numa construção mais recente. Em temos estruturais, são coisas diferentes mas terão de ser estudadas. As exigências hoje em dia também são diferentes das dessa época.

RM: Na verdade, nesses edifícios tem-se encontrado de tudo. Por exemplo, já inspecionei um edifício de 12 andares sem caixa de elevador em betão armado, que portanto não respeita o Regulamento de Estruturas de Betão Armado e Pré-Esforçado (REBAP). Há casos desses, resultantes de aprovações que não deviam ter acontecido mas aconteceram. Em termos térmicos, nós temos um clima extraordinário mas as nossas casas não têm um conforto térmico tão bom como as do norte da Europa. As disposições construtivas e os revestimentos que protegem as trocas térmicas do edifício de forma passiva foram mal utilizados. Há muito trabalho a fazer nesse domínio. Em Portugal acho que é perfeitamente possível adotar a lógica dos edifícios com necessidades de energia quase nulas, através de revestimentos passivos e com sistemas mais “inteligentes” em termos energéticos, de aproveitamento dos fluxos de calor. Há muito trabalho a fazer do ponto de vista estrutural e do ponto de vista do conforto térmico, que pode conduzir a poupanças de energia muito grandes. Neste momento, não vivemos num nível europeu em termos de conforto. As casas estão muito frias porque as pessoas não têm dinheiro para despender com a eletricidade.

MLA: Se os edifícios tiverem boa construção e forem eficientes em termos energéticos, não gastam. Há também outros aspetos relacionados com a saúde que é necessário ter em conta, como a qualidade do ar e as questões da acústica. Aliás, está provado que a qualidade do ar afeta de maneira muito significativa a saúde das pessoas.

Estas exigências europeias, nomeadamente a nível de espessura de revestimentos, afetam negativamente o parâmetro da Qualidade do Ar Interior?

RM: Hoje em dia conseguem-se sistemas que garantem a ventilação e simultaneamente aproveitam a temperatura do ar que se retira. Não se perde a temperatura mas vai-se buscar ar renovado. São sistemas muito eficientes e muito interessantes. Sem dúvida que este aspeto da renovação do ar é muito importante, assim como os materiais utilizados. Há mais materiais nocivos além do fibrocimento. As construções em granito também trazem alguns inconvenientes em termos de saúde.

MLA: O facto de termos edifícios com melhor isolamento e melhor eficiência energética de maneira nenhuma interfere com a qualidade do ar se as coisas forem feitas como deve ser.

RM: É preciso integrar estes aspetos com a ventilação. Em Portugal, não é necessário tanta espessura de isolamento como no norte da Europa. Precisamos de ter sistemas de ventilação bem estudados e uma arquitetura bem pensada. Os nossos arquitetos antigamente eram especialistas nessas áreas, e existem edifícios em África completamente pensados para este tipo de situação. Os projetos têm de ser concebidos de forma a que o edifício respire por si só. Acho que muito facilmente conseguimos edifícios que, sem energia, conseguem estar à temperatura desejável no verão e no inverno e com um ar ambiente muito aceitável.

Recentemente, o Professor Mário Lopes [Instituto Superior Técnico e Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica] alertou que um terço da cidade de Lisboa ficaria destruído na eventualidade da repetição de um sismo como o de 1755. Por que razão esta questão não tem sido mais acautelada a nível de construção?

MLA: É também uma questão de dinheiro e de as pessoas terem uma cultura de investir nessa área. No entanto, uma cidade não se pode mudar de um dia para o outro. O que importa é as pessoas estarem conscientes dos riscos para, à medida das possibilidades, irem melhorando o seu património pensando também nesse aspeto. Houve práticas, antigamente, menos adequadas, até de construção de edifícios clandestinos, e tudo isso tem repercussões. Quando se diz que um terço da cidade ficaria destruída também é por causa dessas situações, comuns na década de 1960. Eu acho que a situação não está melhor devido a um histórico acumulado. Nos processos de licenciamento poderia haver um maior controlo também, embora eu esteja mais do lado da investigação e não tanto da implementação.

E desse lado o trabalho tem sido feito, correto?

MLA: Tem, e não só pelo LNEC mas também pelas universidades e pelas empresas. Temos feito muitos projetos em parceria com empresas para estudar soluções de reforço sísmico, portanto não é por falta de conhecimento. Há um histórico, há a falta de cultura de prevenção do risco e há a questão do dinheiro.

RM: Para o nível de clientes que já começamos a ter, talvez se justifique determinados promotores pensarem em vender uma solução com um bom desempenho sísmico. Temos excelentes técnicos no LNEC e nas universidades, e as empresas estão dotadas da tecnologia mais avançada que há. A Teixeira Duarte tem um equipamento de análise dinâmica experimental que permite avaliar os modos de vibração do edifício antes e depois da reabilitação e verificar as suas alterações em termos de desempenho. Não se pode dizer que não existem técnicos ou tecnologia em Portugal. Existe e até pode ser exportada. Importa também dizer que os portugueses foram pioneiros na Engenharia Sísmica. Depois do sismo de 1755, a Engenharia Sísmica teve o seu impulso em Portugal. Temos esse legado histórico que devíamos apadrinhar, mostrando lá fora a nossa valência. É, de certa forma, uma vergonha, o que estamos a fazer em determinados edifícios. Na baixa pombalina estão a ser retiradas paredes ao nível da base dos edifícios. Ora, a força sísmica transmite-se, no limite, através das paredes na base, portanto estamos a aumentar imenso a probabilidade de um colapso por corte basal dos edifícios. Fazemos grandes lojas, retiramos todas as paredes e além disso ainda vamos fazer arquivos nos pisos mais elevados, o que aumenta a massa e a força sísmica. É um retrocesso e apesar de já não ser permitido em algumas situações, foi feito com frequência.

Eu julgo que temos de procurar oferecer algo de melhor para os consumidores e procurar alertá-los, ao invés de seguir pela via da imposição. Criar mais mecanismos que vão complicar, em termos administrativos, os processos, não me parece bem, porque a complicação administrativa já é muito grande. É preciso incentivar um modelo de negócio com os promotores imobiliários, ou seja, um modelo de fidelização com intervenção de alguém de fora que valide as soluções, gerando-se um modelo de confiança entre o consumidor e o promotor. As seguradoras também deviam estar conscientes desta situação. Se o consumidor puder poupar no seguro por ter a resistência sísmica adequada, tem aí uma mais-valia.

MLA: Além dos aspetos da reabilitação e da segurança estrutural, parece-me importante abordar a preocupação com o ambiente. A construção é sempre muito mal cotada nessa área por ser uma indústria que gasta muita matéria-prima e que produz muitas toneladas de resíduos. É a indústria que produz mais resíduos mas atualmente reutiliza quase todos os resíduos, e a tendência é para que esses números cresçam. A abordagem de ciclo de vida ainda não é uma realidade totalmente interiorizada por todos os intervenientes, e esta questão ambiental também se relaciona muito com a reabilitação urbana. A reabilitação urbana gera resíduos. É certo que se em vez de reabilitarmos, deitássemos abaixo para construir de novo, geraríamos ainda mais resíduos, mas há uma prática que temos de implementar: é necessário criar mecanismos de demolições seletivas, para se poder aproveitar os materiais o melhor possível, ao invés de os reciclar sem aproveitar os recursos. Há materiais nobres e por isso têm de ser mais bem aproveitados. Também é necessário sensibilizar as pessoas para isso, porque uma demolição seletiva é mais demorada, mas essas práticas deviam ser mais motivadas. As coisas estão a caminhar para aí mas ainda há muito caminho para se fazer. Começar-se-á, pelo menos na questão das compras públicas, a ter critérios ambientais para escolher os concorrentes, e mais uma vez impõe-se a questão da cultura. As nossas crianças já estão muito mais educadas para a reciclagem mas na construção esses processos nem sempre são totalmente compensadores portanto é mais demorado instalar essa cultura. A eficiência energética, até por via da legislação, já obriga as pessoas a preocuparem-se, mas também importa ter em conta esta área em que a construção civil nem sempre é bem vista, apesar de ser uma indústria com muito potencial e que faz muito trabalho, embora precise de melhorar essa componente.

RM: A construção é responsável pela emissão de 40 a 50 por cento dos gases com efeito de estufa, direta ou indiretamente, e também consome muitos recursos naturais. Há, da parte da Europa e do mundo, um grande empenho em mudar isso. Tudo o que fizermos para melhorar na área da construção tem uma projeção muito grande face ao grande volume de recursos em questão, e por isso acho que tem todo o interesse explorar essa área. A reabilitação é a vertente mais simpática, porque quando reabilitamos, estamos a gastar menos de 10 por cento dos recursos que gastaríamos se estivéssemos a construir de novo. A reabilitação é quase a reciclagem integral de um edifício. Esta é a melhor imagem que podemos dar.

Ainda assim, há determinados edifícios (ou quarteirões) que deviam mesmo ser demolidos, pois são insalubres. Era bom criar espaços verdes interessantes. A cidade de Lisboa tem zonas que não têm mesmo interesse, pelo que seria desejável, com os arquitetos e urbanistas, identificar essas zonas, destruí-las e depois reaproveitar os materiais, com o objetivo de promover uma boa regeneração urbana. A reabilitação tem de ser acompanhada de regeneração e se Lisboa se tornou uma cidade apelativa é porque houve inteligência para criar focos de interesse e desenvolver praças, e isso passa, por vezes, por demolições.

Aproveito para falar de outro aspeto: a quantidade de instalações de cabos enrolados à volta dos edifícios. Eu acho que esse tipo de instalações está a tornar os edifícios muito feios e esteticamente desinteressantes. Devia haver, da parte de quem instala esse equipamento, uma exigência de esconder essas instalações. Não me parece aceitável que os edifícios tenham estes fios todos à volta.

Em que medida as soluções inteligentes pode ajudar a ir de encontro a critérios de eficiência, de sustentabilidade e de conforto?

RM: É o futuro. Não há dúvida que a breve trecho vamos ter sistemas inteligentes e interativos. É aí que vai assentar o modelo de negócio. Esses sistemas vão permitir monitorizar a qualidade do ar, a questão térmica e até os aspetos estruturais. O caminho é juntar as tecnologias de informação e comunicação com a construção. As pessoas vão viver em ambientes constantemente monitorizados, auto-compensados e até mesmo auto-reparáveis. Já existem revestimentos com esse mecanismo de auto-reparação, ou seja, se abre uma fissura depois ela é fechada. A tendência é para seguir por essas áreas, a par da nanotecnologia. Uma construção daqui a uns anos não vai ter nada a ver com o que nós estamos habituados hoje em dia. Quando um consumidor compra uma determinada solução pode comprá-la já com um determinado índice de performance e depois pode monitorizá-la com esses sensores, abrindo a possibilidade a um modelo de ligação e compromisso.

MLA: A montante disso, existe já uma diferença enorme entre hoje e o que acontecia há uns anos. Hoje em dia já se utilizam ferramentas como o BIM, que já é um passo nesse sentido. Este tipo de ferramenta permite-nos saber onde estão as coisas dentro do edifício e ter mais informação de como foram feitas.

Rita Moura é licenciada em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico e é quadro da Teixeira Duarte desde 1986. Preside atualmente à Plataforma Tecnológica Portuguesa da Construção, que tem como missão a promoção da reflexão sobre o setor e implementação de iniciativas e projetos de investigação, desenvolvimento e inovação.

Maria de Lurdes Antunes é vogal do Conselho Diretivo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) desde 2010. É Investigadora Coordenadora, incidindo o seu trabalho essencialmente sobre as áreas de conceção, modelação e conservação de pavimentos rodoviários. É também Chefe do Núcleo de Infraestruturas Rodoviárias e Aeroportuárias do Departamento de Transportes e do Núcleo de Pavimentos Rodoviários do Departamento de Vias de Comunicação do LNEC.

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