“As obras desenvolvidas pelos privados acabam por ter mais preocupações de sustentabilidade”

Fotografia: DR

A pouco mais de uma semana do 1º Congresso da Associação Portuguesa de Projectistas e Consultores, o seu presidente, Jorge Nandim de Carvalho, analisa a forma como a procura pelo preço mais baixo nos contratos públicos obsta à concretização de práticas estruturais de sustentabilidade, salvaguardando a necessidade de alterar o Código de Contratos Públicos. Nandim de Carvalho antecipa um crescimento da industrialização na construção, mas avisa que isso requer melhor planeamento.

Entrevista por Cátia Vilaça e Letícia Ferreira

O futuro da construção vai ser marcado pela digitalização e por uma forte orientação para a sustentabilidade. Qual o grau de preparação das empresas para esta realidade? E da academia para transmitir essa necessidade?

Os temas que refere vão estar em discussão a 21 de novembro no 1º Congresso da APPC, subordinado ao tema “Arquitetura e Engenharia, Um Setor em Mudança Acelerada”, com o objetivo de reforçar o debate sobre os grandes desafios do setor, como é o caso da sustentabilidade, da digitalização e da industrialização da construção. De facto, o grau de preparação das empresas parece ser diferente e não muito homogéneo, dependendo também da área onde se inserem. As grandes e médias empresas sentem que os desafios da digitalização e da sustentabilidade já são uma realidade e que são necessários para o próprio desenvolvimento e competitividade da empresa. Sabem inclusivamente que a certificação ESG [Environmental, Social and Corporate Governance] será exigida mais tarde ou mais cedo e que nos seus relatórios anuais têm de descrever as evoluções e contribuições da empresa em matéria de sustentabilidade e desenvolvimento social, para além dos temas habituais económico-financeiros. Já nas empresas, mais pequenas e familiares a digitalização estará tão avançada quanto o negócio exige e a orientação para a sustentabilidade depende do posicionamento do líder relativamente a estes assuntos.

Quais são hoje os principais entraves à generalização de práticas de sustentabilidade nos projetos, sejam elas de circularidade, utilização de novos materiais, preferência por sistemas passivos: são técnicas, económicas?

Diria que as razões são diversas. Por exemplo, os grandes promotores imobiliários já utilizam, até para promoção das suas vendas, sistemas de certificação BREEAM ou LEED destinados a incentivar a construção e operação de edifícios sustentáveis. Estas certificações nasceram em Inglaterra e nos Estados Unidos, respetivamente, e ao projetar um edifício candidato a um destes sistemas ou outros semelhantes, as nossas associadas têm em conta diversos fatores, como a eficiência energética, consumos de água, saúde, bem-estar, neutralidade carbónica, entre outros, e todo o projeto é desenhado, não só com uma perspetiva imediata, que é a de construir, mas também, e principalmente, com uma perspetiva futura de pelo menos 50 anos, pois é este o período de vida teórico da obra projetada. Esta visão de longo prazo é que nos conduz às vantagens económicas de uma obra mais sustentável.  Parece assim, à primeira vista, que as obras desenvolvidas pelos privados acabam por ter mais preocupações de sustentabilidade do que as promovidas pelo próprio Estado, pois este só raramente considera, nos cadernos de encargos das construções que promove e nas avaliações das propostas que recebe, qualquer critério quanto à sustentabilidade, aos custos totais durante o ciclo de vida da construção e à utilização ou não de novos materiais reciclados. As propostas de elaboração de projetos ou de execução de construções cingem-se quase sempre à obtenção do mais baixo preço imediato. Assim não vamos longe!

Os Resíduos de Construção e Demolição continuam a ter uma expressão considerável no fluxo de resíduos europeu. Que passos têm sido dados para inverter esta tendência e acelerar a incorporação de resíduos na construção?

A legislação de resíduos que é de final de 2020 já obrigava a que 10% de todos os materiais incorporados numa obra tenham origem em materiais reciclados. Mas, na verdade, só agora é que se começa a impor, designadamente nalguns concursos públicos de importância, a obrigação de os concorrentes integrarem esta condição nas suas propostas. As fichas técnicas de alguns produtos, por exemplo o aço, betão, soalhos, já vêm com indicação da percentagem de produto reciclado.  Como projetistas que somos, cabe-nos procurar no mercado soluções de materiais que incorporem a maior quantidade possível de materiais reciclados, mas continuamos a não ser valorizados nas nossas propostas, por elas incorporarem mais ou menos materiais reciclados. Estamos, portanto, a dar os primeiros passos e a consciencializarmo-nos para a importância da circularidade. O ciclo é complicado e exige vários operadores. Por exemplo, logo na demolição, a fiscalização – normalmente exercida por associados nossos – deve exigir, desde logo, uma triagem para facilitar a seleção posterior e o envio para os potenciais incorporadores. A inovação em materiais produzidos a partir de material reciclado deve também ser incentivada e talvez se possa pensar em benefícios fiscais para aqueles que, desde que certificados pelo LNEC, incorporem mais do que uma percentagem, razoavelmente alta, de material reciclado. Em resumo, penso que a indústria da construção já incorporou esta necessidade de circularização e já entendeu que até pode ser um negócio rentável.

Relativamente à problemática de falta de mão de obra no setor da construção, e sobretudo a falta de mão de obra especializada, a digitalização e industrialização (como, por exemplo, a construção modular) pode ser uma forma de enfrentar esta problemática?

Sobre a falta de mão de obra qualificada, olhando, por exemplo, para os casos dos arquitetos ou engenheiros civis, a procura é intensa devido à fase de grande investimento nos próximos anos, quer no PRR, quer no PNI2030. Estes investimentos começam pela execução dos projetos - as empresas de projeto estão com um grande fluxo de trabalho, mas no nosso país remunera-se muito mal neste setor. Além disso, a política de se escolher sempre o projeto com o valor mais baixo, sem se ver refletida a qualidade técnica das propostas, leva a uma destruição de valor significativa. Como consequência disto, os técnicos qualificados do setor olham para outras opções, como seguirem a sua carreira profissional noutros países onde se sentem mais valorizados. Quanto à digitalização e industrialização como forma de enfrentar este problema, parece-me que será absolutamente o contrário pois inicialmente são justamente estas atividades que exigem mão-de-obra mais especializada, designadamente na conceção do projeto fabril. A industrialização da construção, também construção “off-site”, são nomes “artísticos” que entraram agora na moda para um sistema que é falado há muito tempo e que é o da pré-fabricação. Diga-se, em abono da verdade, que muitos projetistas não apreciavam este sistema, pois retirava-lhes a autoria do projeto. Atualmente, salvo raras exceções, a autoria não se põe com tanta premência, sendo muito mais valorizada a capacidade técnica, a capacidade económica, o cumprimento dos prazos e a rapidez. Julgo que por estas razões, a industrialização da construção vai crescer, pois temos de construir casas mais depressa e bem. Para isso temos de planear melhor e integradamente, isto é, desde o início deve haver uma forte parceria entre promotor, o projetista e o construtor.   

O custo elevado das formações BIM e do próprio software pode representar ainda um entrave para a maioria das empresas. Em que medida isto pode atrasar a implementação da tecnologia?

Os custos são realmente elevados, mas a grande parte das empresas projetistas já os incorporaram tanto na aquisição de software, como na formação dos seus arquitetos e engenheiros. Uma empresa que não tenha iniciado este ciclo há uns cinco anos está hoje incapacitada de concorrer a concursos de obras públicas ou investimentos privados com importância. Nas nossas empresas já se começa a pensar nas melhores formas de aplicação da inteligência artificial. Se estivéssemos à espera dos incentivos do Estado para darmos estes passos perderíamos o mercado internacional, exigente e competitivo. Temos sentido que a implementação da tecnologia faz o seu caminho à velocidade permitida por uma certa continuidade económica necessária para evitar disrupções. A obrigatoriedade de utilização do BIM a partir de 2026, conforme preconizado na proposta de lei em discussão na Assembleia da República, pode implicar algum esforço importante em empresas pouco rentáveis ou mais limitadas em recursos financeiros. É por isso que discordamos totalmente da obsessão pela adjudicação ao mais baixo preço.

O fator da sustentabilidade em empreitadas deveria ser ponderado como fator obrigatório em concursos de obras públicas, de forma a “dar o exemplo” ao setor privado? Ou deveria ser pensado em incentivos? E de que natureza?

Sim, claro que o fator sustentabilidade deveria ser de ponderação obrigatória em obras públicas, mas como disse atrás parece ser o setor privado que, por enquanto, se preocupa mais com esta problemática, sendo talvez até este que esteja a dar o exemplo ao Estado. Com todos estes temas, sustentabilidade, industrialização da construção, circularidade, cremos que não vai ser possível mantermos, no que diz respeito ao setor da construção, este Código de Contratos Públicos. Este Código é um obstáculo ao desenvolvimento porque é extremamente complicado e fomenta essa complicação. Por exemplo, as obras têm de ser lançadas todas com base em projetos de execução e raramente são permitidas variantes. Não sei qual vai ser o futuro, se quase todas as obras públicas vão ter de ser lançadas em regime de conceção/construção, para serem avaliadas as que melhor satisfazem os parâmetros de sustentabilidade durante o seu ciclo de vida, se terão de ser lançadas com base em anteprojetos para dar liberdade a variantes tecnológicas na área da industrialização. O que me parece é que este Código é extremamente restritivo e contém uma linha incentivadora da litigância entre o Estado e os seus fornecedores, em lugar de, pelo contrário, incentivar um posicionamento colaborativo.

Como disse acima, no dia 21 de novembro, no Congresso da APPC, abordaremos todos estes temas (mais informação pode ser encontrada em www.appconsultores.org.pt)

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