É possível repensar a rua para as pessoas?

O Porto recebeu, a 18 de novembro, a primeira conferência da plataforma The Future Design of Streets.

A ideia chave trazida pelos participantes, e já antecipada pela organização, é a da reconquista do espaço público pelas pessoas, ou seja, da retirada do protagonismo ao automóvel. Logo no painel de abertura, Ivo Oliveira, da Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho, lembrou os bons exemplos de reabilitação que tornaram os centros históricos pedonais, mas sem esquecer as más intervenções, feitas em função dos loteamentos e não do usufruto do espaço público. O problema começa logo no desenho, e apesar da preponderância das questões climáticas, ainda se projeta em função do carro. Quem o nota é Teresa Calix, coordenadora do grupo de Morfologias e Dinâmicas do Território do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. A docente realça que ainda hoje o progresso é entendido como sinónimo de crescimento, e ainda persiste a ideia de projetar ruas largas para albergar mais carros. Teresa Calix lembrou ainda a desigualdade de uma cidade que hostiliza os mais desfavorecidos: quando o automóvel não é uma opção, a locomoção a pé ou de autocarro apresenta dificuldades.

Se a Teresa Calix coube lembrar a necessidade de criar infraestruturas que permitam dispensar mais eficazmente o automóvel, a Bruno Baldaia, da Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitetos, coube trazer ao debate a futura obsolescência de grandes infraestruturas que deixarão de fazer sentido em cidades onde o automóvel não impere. Essa mudança de paradigma implicará ter em conta o que fazer com viadutos, por exemplo, e de que forma será possível renaturalizar essas estruturas. Mudanças que, lembra o arquiteto, já aconteceram no passado, ainda que maioritariamente em sentido contrário, quando se construíram ruas em espaços anteriormente ocupados por rios e ribeiras.

Coube a Daniel Casas Valle, urbanista e um dos dinamizadores da plataforma, encerrar o painel e resumir os determinantes que devem pesar na conceção das ruas: Social, Ecologia e Mobilidade (e não apenas a mobilidade).

Reconquistar a rua

Sónia Lavadinho é diretora da Bfluid, gabinete especializado em desenvolvimento territorial. A sua intervenção convidou a plateia a repensar o espaço público, de cidade funcional a cidade de relações – não apenas interpessoais, mas com o próprio espaço. Isso faz-se, desde logo, anulando barreiras, de modo a estimular o contacto com as árvores e pontos de água. Pode fazer-se também por camadas, através daquilo a que Sónia Lavadinho chamou a “segunda pele dos parques”, ou seja, conquistar, enquanto espaço verde e social, os primeiros anéis de ruas à volta dos parques já existentes.

Há outras transformações possíveis, que implicam mudanças mais profundas na forma de estabelecer prioridades. A antropóloga e geógrafa deu o exemplo das áreas para as crianças brincarem: se hoje essas áreas são parques vedados, que implicam que os pais dediquem uma porção de tempo (por vezes inexistente) a levar as crianças a essas áreas e regressar, Sónia Lavadinho propõe uma maior fluidez de funcionalidades, um espaço público onde haja áreas para brincar a caminho do supermercado e da escola.

Outra das propostas é transformar as passadeiras em espaços verdadeiramente seguros e vivos, com água e vegetação – mais uma vez, impera a pessoa, não o veículo.

Mas o condutor não é esquecido: a investigadora propõe também um modelo que designou por caring parking, ou seja, criar espaços públicos agradáveis contíguos às zonas de estacionamento. Não é esquecido, é incentivado a deixar o veículo.

Michiel van Driessche trouxe dos Países Baixos um modelo de avaliação de ruas e de aferição da possibilidade de reequilibrar funcionalidades, que tem posto em prática através do seu gabinete Felixx Landscape Architects & Planners. O arquiteto paisagista reconheceu que conta com um contexto político progressista favorável a esta evolução, e nessa base propõe uma rua propiciadora de experiências, onde o importante não seja apenas ir do ponto A ao ponto B, mas usufruir de experiências culturais, artísticas ou sociais durante o percurso. Depois da rua, poderá pensar-se na escala do bairro, e daí passar-se para a cidade.

A arquiteta da Câmara Municipal de Barcelona Sílvia Casorrán enumerou alguns dos problemas causados pelo aparecimento dos carros nas cidades, nomeadamente a poluição do ar, o ruído, os acidentes, a ocupação do espaço – como os estacionamentos indevidos nos passeios – e as alterações climáticas. A Câmara Municipal de Barcelona quer mais espaço para as pessoas e para as bicicletas, e ainda redução de velocidade para os veículos.

Sílvia Casorrán apresentou algumas soluções já pensadas ou até implementadas pela Câmara na cidade de Barcelona, como por exemplo a redução de 12 para oito vias para os carros na Avenida Meridiana; na Avenida Diagonal vão ser retirados os carros para ser ocupada apenas por peões e metro. Estas medidas têm um efeito positivo nos solos, que passam a ser mais permeáveis, e assim a rua pode tornar-se mais verde com o crescimento de árvores.

O responsável pelo projeto BooST – Impulsionar a bicicleta em Cidades principiantes, que forneceu um conjunto de ferramentas de apoio ao planeamento, incluindo um modelo de avaliação do Potencial Bruto para a Bicicleta, um modelo de avaliação do Valor Económico para a Bicicleta e um modelo Selecionador de Medidas para a Bicicleta mais adequadas a cidades-principiantes, José Carlos Mota, do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, falou sobre a humanização do espaço público.

Para José Carlos Mota, o urbanismo atual das cidades não foi pensado para as crianças, dando como exemplo a deslocação das crianças entre casa e escola, que são conduzidas pelos pais e não ganhando autonomia para irem para a escola a pé e sozinhas, o que poderia acontecer caso o espaço da rua em que a escola se encontra fosse de acesso limitado a automóveis.

Já o urbanista Paul Lecroart, do Instituto de Planeamento da Região de Paris, salientou as numerosas e até excessivas autoestradas existentes nas cidades, que ocupam muito espaço urbano. Referindo um estudo aquando do fecho de uma autoestrada, Paul Lecroart disse que uma parte do trânsito não é desviado para outras vias, mas simplesmente desaparece porque as pessoas acabam por mudar os seus hábitos.

O urbanista francês mencionou a recente renovação urbana em Seul de grandes dimensões, que envolveu fechar uma das principais artérias viárias da cidade e transformá-la num espaço para peões e revitalizar o Rio Cheonggyecheon.

Com o objetivo de devolver a margem do rio Sena aos pedestres, também Paris decidiu retirar os automóveis da via Georges-Pompidou (uma das vias junto ao rio) primeiramente com o projeto Paris Plages, que transformava a beira do rio Sena numa ‘praia’ ocasionalmente. Mais tarde, a via Georges-Pompidou, usada diariamente por cerca de 43 mil viaturas, passou a proibir a circulação de carros e tornou-se num parque urbano.

Esta e outras soluções mencionadas ao longo da conferência foram apontadas como exemplos a seguir para melhorar o urbanismo no futuro, de forma a devolver o espaço aos peões e a priorizar o uso da bicicleta ou dos transportes públicos para deslocações dentro das cidades, o que não só trará benefícios para a saúde pública – como a melhoria da qualidade de ar –, como para o ambiente, ao ajudar na redução de emissões de dióxido de carbono.

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