Entrevista a José de Matos

Entrevista por Cátia Vilaça com Hipólito Sousa

Fotografia por Cátia Vilaça

Formado em Economia, o Secretário-Geral da Associação Portuguesa dos Comerciantes de Materiais de Construção (APCMC), José de Matos, traça um retrato aprofundado dos ciclos económicos que determinaram a evolução do setor da construção em Portugal. Faz também o balanço da forma como o setor se foi adaptando e das mudanças que ainda estão por fazer. Pelo meio, caracteriza também o tipo de reabilitação que se tem feito e os fatores que o determinam.

Tendo em conta o seu conhecimento deste setor, decorrente do número de anos que leva à frente da associação, como encara a evolução do setor da construção, sobretudo em Portugal, nestes últimos 30 anos?

A antiguidade traz experiência se for bem aproveitada. Estar tantos anos ligado ao setor acaba por nos trazer informação diversa e a vivência de situações muito diferentes. Eu comecei a trabalhar aqui na Associação dos Materiais de Construção exatamente no fim de uma pequena crise no setor, que foi a de 1983-1985.

Estas coisas são cíclicas.

São sempre. O setor da construção cresceu no fim dos anos 80, o que foi acompanhado de transformações interessantes, como termos tido, pela primeira vez, um regulamento a sério no âmbito do isolamento térmico, que foi o RCCTE. Nos anos 90 e mais tarde, com a diminuição sistemática e progressiva das taxas de juro, houve o grande crescimento do setor da construção de habitação nova, respondendo à ideia de que faltariam 700 ou 800 mil casas em Portugal. Já se tinham experimentado sistemas do crédito à habitação com taxas bonificadas porque vivíamos em tempos de taxas de juro elevadíssimas, com a inflação a 25 por cento, portanto para a maior parte das famílias médias só era possível aceder a uma casa com compra de habitação a 25, 30 anos e com taxa de juro bonificada. Houve grandes mudanças na promoção da construção e foram lançadas grandes obras públicas com a chegada dos fundos comunitários. Foi um período de grande crescimento pelas necessidades da economia e das pessoas no setor da construção de edifícios habitacionais e não habitacionais.

Mudanças a que o setor se foi adaptando bem…

O setor tornou-se dinâmico, e as empresas de construção cresceram durante todos esses anos. Portugal tinha tradições, como o LNEC, mas não tinha consolidado uma enorme capacidade, sobretudo profissional, no projeto, na direção de obra, que se consolidou com 15 anos de crescimento importante. Há quem diga que até ficou hipertrofiado em relação à economia do país, e de alguma forma isso é verdade. Com a entrada na atual União Europeia, tivemos um grande crescimento do nosso setor industrial e do setor exportador, mas também tivemos problemas em setores tradicionais como o têxtil e o calçado. A seguir houve novo problema com a entrada de terceiros países, que trouxeram uma nova competição nos setores industriais. A partir sobretudo de 1995, houve perda de intensidade no crescimento industrial e empresarial em geral, e uma significativa reorientação dos recursos para o setor financeiro, acompanhada de um contínuo crescimento do setor da construção e de um contínuo enriquecimento da própria sociedade portuguesa. Há também um grande crescimento, uma hipertrofia do próprio Estado que, com taxas de juro mais baixas e uma economia maior, cresceu, nalguns casos de forma importante para prover serviços públicos para o país, noutros com alguma hipertrofia do setor público, com muitas duplicações. Quando a economia já não estava tão dinâmica o setor da construção continuou a crescer, e depois foi o último a cair mas foi o que caiu mais. Quando, depois de alguns períodos de estagnação e até erros económicos, vem a crise internacional, dois anos depois descobre-se a falta de recursos financeiros a nível mundial. Começou a olhar-se para os devedores e viu-se em Portugal um país com uma elevada dívida, que todos os dias pedia mais e não crescia. Quando se acendem as luzes vermelhas relativamente a um devedor de risco, corta-se-lhe o crédito e aumenta-se-lhe os juros exponencialmente. Em poucos meses tivemos de pedir ajuda financeira e fomos para o resgate, e depois vivemos aqueles períodos com supervisão internacional da troika. O setor da construção vivia de um triplo crédito. Havia expectativas de lucro e de valorização do imobiliário, e aquilo que os nossos bancos melhor podiam utilizar como ativos para captar financiamentos dos bancos europeus eram exatamente créditos imobiliários, portanto nós tínhamos uma espécie de subprime à portuguesa, salvaguardadas as devidas diferenças. Os bancos europeus que emprestavam aos bancos nacionais, faziam-no fundamentalmente em troca de carteiras de ativos imobiliários com alta valorização. Nós sabíamos como cresciam os preços do imobiliário em Portugal, portanto os próprios bancos insistiam no crédito à habitação porque era uma forma de gerar ativos para obter lucros, e era o melhor ativo que se podia colocar para obter financiamento. O grande problema é que quando uma família fazia um crédito à habitação, fazia-o por 25 ou 30 anos, enquanto os bancos utilizavam essas carteiras de ativos para pedir empréstimos a 2, 4 ou 6 anos. Quando surgiu a desconfiança, deixaram de ter esse valor porque as famílias portuguesas deixaram de ter condições para pagar as prestações do crédito. Não foi como o subprime mas os bancos europeus também não aceitavam mais essas carteiras de ativos. O próprio Estado também captava dinheiro da Europa através do sistema bancário na venda de obrigações do Tesouro aos nossos bancos, que por sua vez as colocavam lá fora, e essa era outra carteira de ativos muito importante no negócio financeiro português. O setor da habitação e o setor da construção foi muito financiado por este processo. A construção em geral acabava por ser externamente financiada. O país não tinha poupanças suficientes, não gerava riqueza suficiente, mas como estes eram ativos interessantes, através do sistema financeiro era possível financiá-los lá fora. Com a crise internacional isso acabou. Quando isto acaba nós temos uma crise muito mais profunda no setor da construção, que já vinha de 2002/2003, mas mesmo assim nós passámos de um pico de 130 mil habitações para quarenta e tal mil, o que seria equilibrado, mas nessa altura veio a crise e com ela descemos para oito a nove mil licenciamentos de apartamentos anuais. Era tão pouco que nós advertimos que iriam faltar casas e agora faltam. É a especulação imobiliária, as infraestruturas estão atrasadas. Neste momento já estamos a ficar com algumas carências pontuais que se podem tornar graves em termos de infraestruturas, de vias de comunicação mas não só. O processo de construção não é algo que possa parar-se assim. Tem ciclos longos que precisam de ser planeados e quando de repente a economia retoma, volta o emprego à concentração em certas zonas urbanas, não há forma de dar resposta. Também não foi a prioridade do Governo, e o Estado só agora em 2019 está a tomar as primeiras medidas para se lançar como promotor de habitação. Depois houve erros pontuais pela excitação que se cria nisto e pela tentativa de dar respostas imediatas a coisas que não têm resposta imediata.

O que é que aconteceu neste entretanto e que nos apanhou na crise? Mudanças qualitativas fundamentais no processo de construção. Enquanto nós vivemos a crise da quantidade há transformações no mundo e há mudanças de paradigma, e a própria sociedade portuguesa também se alterou muito.  Neste momento podíamos dizer que o setor está bem. Tem mais procura do que aquilo a que consegue responder mas isso também não é necessariamente bom.

Com toda esta conjuntura, o setor tem encontrado maior dificuldade em reerguer-se desta crise do que de crises anteriores?

Houve uma grande destruição das empresas e respetiva competência. A competência reside em pessoas e quando reside nas empresas, está no que as empresas conseguem associar como grupos de trabalho de competência, e que se exprimem na execução de projetos. Ora, deixa de haver trabalhos e as empresas têm de destruir esses núcleos de competências. Não conseguem sustentá-los por isso ou despedem-nos ou simplesmente as pessoas vão-se embora e foi isso que aconteceu. Os equipamentos compram-se outra vez desde que haja dinheiro e haja obra. Essas pessoas dispersaram-se e temos portugueses em empresas internacionais. Algumas empresas ainda conseguiram manter esse valor, nomeadamente as que conseguem estar ainda com alguns trabalhos importantes em África ou na América Latina, mas a nossa competência encontra-se disseminada pelo mundo. Já não falo dos engenheiros, projetistas e diretores de obra mas mesmo em quem faz as obras. Os anos de interregno levaram a que esses profissionais emigrassem, portanto existe uma grande procura porque aqui houve problemas mas França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Noruega, Dinamarca não têm mãos a medir. Entretanto o mundo mudou, surgiram novos produtos, novas soluções construtivas, novas tecnologias de construção, novas exigências que têm a ver com o ambiente e a sustentabilidade. É também necessário, agora cada vez mais num país como Portugal e não só, construir mais barato.

Há também necessidades de renovação deste imenso património imobiliário que temos. A renovação dos centros urbanos na parte histórica tem sido muito motivada por fins comerciais e turismo, precisa de um grande investimento para se adaptar aos novos paradigmas ambientais e de eficiência energética. Os edifícios não duram para sempre e nós temos de admitir que às vezes esquece-se que o esforço de manutenção durante a vida média do edifício é mais ou menos de 1 por cento ao ano do seu valor inicial. Isto também tem de ser considerado e quando há longas paragens, dificuldades e mudanças de paradigma, mais uma vez é necessário investimentos superiores. O setor da construção tem muita mão-de-obra nas formas construtivas tradicionais, mas estão a ser criados novos tipos de materiais e de soluções construtivas, de muito mais forte preparação industrial, e portanto de menos exigência em termos de aplicação. Este é um setor em que essas soluções avançam mas ao mesmo tempo mantemos as tradicionais. O setor é tipicamente muito tradicional, e depois o facto de existirem edifícios antigos leva a que muitas soluções aplicáveis a edifícios novos não possam ser aplicadas em reabilitações de edifícios antigos, onde existe algum esforço de substituição e demolição.

A entrada no mercado destas novas soluções vai influenciar de alguma forma o preço da construção?

Isso é o que nós esperamos. As novas soluções devem fazer diminuir o preço da construção. Nós temos de considerar o custo de fazer uma coisa na hora mas também o custo que essa coisa tem para o futuro. E nos edifícios, temos de considerar não só os custos iniciais da construção mas os custos de utilização, de manutenção, de grande reparação e os custos eventuais da demolição ou da desconstrução. Uma das coisas que permitem considerar isso é o BIM, que permite, de forma integrada, tratar toda a formação e permite às várias equipas partilhar e transmitir informação livremente na construção de um projeto e trocá-la no acompanhamento da execução, além de permitir planear todas as outras fases da utilização do edifício. Estimar os custos da exploração, da utilização do edifício, da manutenção, dos períodos de substituição de materiais, e ainda, utilizando as últimas ferramentas desenvolvidas de análise de ciclo de vida de produtos e análise de ciclo de vida do próprio produto de construção, estimar o impacto ambiental global do edifício e dos materiais para poder fazer opções mais consistentes a esse nível.

O preço do metro quadrado há dois anos era da ordem dos 650 / 700 euros. Se calhar estava abaixo do recomendável, mas depois subiu para 850 euros e no prazo de um ano saltou para 1100/1200. Não posso admitir que isto tenha acontecido apenas porque os custos da mão-de-obra aumentaram, embora tenham aumentado porque havia falta de profissionais relativamente à procura. Nós já falámos nos ciclos económicos e portanto quando isto sai de preço a seguir ninguém vai mandar fazer obra porque não há dinheiro para a fazer. Na fase seguinte do ciclo as empresas de construção que levaram 1200 começam a baixar para 1100, depois para 1000, e quem só aceitava ir trabalhar por um valor maior já aceita por menos senão não tem trabalho. O setor da construção é um setor de ciclos longos, ao contrário dos processos industriais rápidos. Na construção quando se decide avançar há um processo burocrático que pode demorar dois anos, depois há um ciclo de contratação de construção, portanto são sempre quatro, cinco anos.

Se eu quiser analisar a situação atual no setor da construção nos vários segmentos de mercado, já não tenho a mesma situação que tinha há dois anos. Não posso confundir tudo mas é importante que a nova construção utilize tecnologias amigas do ambiente e que haja formação. O setor é muto tradicional e as pessoas constroem com os produtos, as soluções, os sistemas construtivos e os tipos de edifício que estão habituados a fazer. O próprio dono de obra quer uma casa como a que viu e como aquela em que está habituado a viver, embora as formas antigas de construir sejam extremamente onerosas em termos de consumo de recursos materiais. Não estou a dizer que o betão ou o tijolo não se usem. Usam, mas não da mesma maneira. Os novos sistemas construtivos utilizam-se de forma combinada, diferente, e depois na própria reabilitação de edifícios também se usam de outra forma. Utilizar todos os sistemas tradicionais em conjunto da forma tradicional é um desperdício de recursos e um gasto imenso de mão-de-obra. E há outro problema: a forma tradicional de construir é muito dura. As gerações que foram educadas a servente nas obras aos 14 anos não veem aqui grande problema, mas se quisermos levar para a construção jovens que andaram até aos 18 ou 20 anos em sistema escolar, num ambiente completamente diferente, não é possível mobilizá-los para profissões onde a execução dos trabalhos continua desta forma rude. Toda a gente sabe que andar a assentar massa numa parede ao sol e carregar tijolo e sacos de cimento não é propriamente uma atividade fácil, sobretudo para quem teve até aos 20 anos uma vida em que trabalhou na área dos serviços ou esteve na escola. Perceber estas mudanças sociais, que são importantes e que ocorreram no entretanto pela substituição de gerações, é também importante para olhar para a construção no futuro. Agora, isto não acontece tudo ao mesmo tempo. Ainda há trabalhadores da geração anterior, empresas da geração anterior e famílias a querer casas como aquelas que eram feitas há 30 anos mas o mundo mudou. E este o grande desafio da construção, de todas as empresas, dos profissionais da construção, dos vários institutos. Nós temos o mundo que aí vem, temos o mundo para trás e estamos no meio a enfrentar estas dificuldades de mudança, de conviver com sistemas diferentes, de ver fazer de uma maneira mas de ter de fazer de outra.

Focando-nos na parte da sustentabilidade, que mudanças e que contrariedades o setor tem sentido a nível técnico, quer a na incorporação de novos materiais, quer também da incorporação e Resíduos de Construção e Demolição? É um assunto que assume uma importância crescente até porque a construção é grande consumidora de recursos naturais.

É o maior consumidor de recursos naturais, por isso temos as novas exigências para que a construção consuma menos recursos, reaproveite alguns daqueles que já estão nos edifícios e que as soluções construtivas originem cada vez menos desperdício. Há quem diga que a construção tradicional gera 30 por cento de destruição dos recursos utilizados durante a própria construção, o que é dramático. Não digo que seja 30 por cento, mas seguramente, no produto bom que aparece e que vai para a obra, há entre 15 e 20 por cento que é destruído no processo de construção, mesmo sem cometer erros, porque havendo erros ainda é preciso demolir parte do que se faz. A manutenção dos edifícios obriga a substituição, portanto aí também tem de haver soluções que gastem menos recursos. A inovação está a fazer-se a todos os níveis. Tem de se dar formação aos trabalhadores, aos técnicos, aos empresários. É preciso também promover junto dos donos da obra as novas soluções, e dos projetistas também. Normalmente as pessoas confiam no que já viram. Como há muito dinheiro envolvido nisto, quem investe não quer soluções que não estejam provadas. O projetista não vai propor soluções dessas, é um risco enorme em termos profissionais. O construtor não se quer meter em soluções que não domina. Os trabalhadores não dominam a solução, tendem a rejeitá-la, depois não conseguem executá-la ou executam-na mal. Temos aqui todo um processo demorado neste setor. O importante é dar os estímulos certos. Pode também haver ações negativas, como obrigar a pagar os custos dos sistemas menos eficientes e menos amigos do ambiente. Eu sou de opinião que os custos devem ser atualizados. Se eu tenho um custo estimado de uma solução que é para ser paga nos próximos 20 anos e que provavelmente não é afeta ao promotor inicial, significa que a sociedade vai ser chamada a pagá-la de qualquer forma, o que traz os problemas que hoje conhecemos, de andar a pagar passivos ambientais. Não há nada como tornar as coisas claras, e se eu estimar esses custos à cabeça tudo isto é transparente.

Queremos promover a inovação nas soluções construtivas, nos projetistas, nas empresas, nos fabricantes, nos processos produtivos, nos novos produtos, nos aglomeradores de soluções, nas empresas de construção que também criam processos mas depois ninguém compra a inovação. Só desenvolver inovação quando isso não tem mercado é muito complicado. Neste momento nós já temos mais soluções do que as que são usadas.

Quando tratamos dos resíduos o grande problema é tratar um resíduo como eventualmente uma matéria-prima num processo produtivo, num processo a que chamamos as simbioses industriais. Onde um gera um resíduo outro aproveita como matéria-prima mas para isso tem de a conhecer. Já não falo no problema da classificação e desclassificação e resíduos, que é um processo que está a melhorar. Antes o processo burocrático impedia que eu tratasse o resíduo como uma matéria-prima mesmo quando era necessária para outra indústria. Desclassificá-lo como resíduo é um processo muito complicado. Agora a Administração Pública tem vindo a trabalhar nesse sentido, está a melhorar e isso é um caminho que estamos a fazer mas os processos industriais ainda estão muito separados. É importante que a indústria dos plásticos comunique com a indústria das tintas, que essa comunique com a indústria da cerâmica, que essa comunique com a indústria da madeira, etc.

A investigação científica também tem aí um papel importante…

As universidades têm mas nós temos muita investigação científica que fica lá. Quantas teses de mestrado e doutoramento ficam na universidade e não são aplicadas? Depois é necessário ligar parceiros de setores diferentes. Às vezes cria-se uma solução técnica muito boa mas o mercado não lhe reconhece o valor. Quando não lhe reconhece valor não compra.. Eu pertenço também à direção da associação do Centrohabitat, que gere o cluster do habitat sustentável e no último congresso que foi feito em Aveiro foram detetadas e foram apresentadas dezenas de soluções no âmbito da sustentabilidade, quer do ponto de vista da utilização de resíduos, quer do ponto de vista de soluções que consomem menos recursos, que consomem menos energia.

Soluções que já estão no mercado ou protótipos ainda?

Muitas já estão disponíveis no mercado e as outras estão em protótipo à espera de que haja quem queira. Algumas estão disponíveis no mercado e são utilizadas muito pontualmente, e sobretudo não são utilizadas em conjunto. Há experiências de utilização de umas soluções mas não de outras.

Isso não acaba por provocar também uma asfixia das empresas que optam por essas soluções?

Muitas acabam por desistir, fazem investigação, têm produto e acabam por abandonar porque não têm procura. As despesas de investigação são sempre grandes. Há apoios inicialmente, mas depois deixa de haver. Além disso, é necessário que as empresas mobilizem recursos e atenção para coisas que depois não chegam ao mercado.

Antigamente ninguém fazia aplicação de gesso cartonado em Portugal. Depois começaram a regressar emigrantes de França, onde se utilizava a técnica, e alguns montaram pequenas empresas de aplicação. Começou a haver essa oferta e hoje em dia toda a gente quer fazer as obras em gesso cartonado. Portanto, há que promover as soluções. Pode haver privados que tomem essa iniciativa mas sobretudo o setor público, que é o maior comprador em Portugal de produtos e serviços do que quer que seja, pode utilizar este fator positivamente, no caso das compras públicas ou das obras públicas e começar a exigir soluções de sustentabilidade e de eficiência energética. Eu diria que podemos fazer não só edifícios de balanço zero, mas neste momento há capacidade para construir edifícios de balanço positivo, isto é, que produzem mais energia do que a que consomem. Só que isso tem custos porque implica soluções construtivas absolutamente inovadoras. Eu quando persigo um objetivo como central tenho de ver que ele não prejudique outros. E se eu me centrar só no edifício de energia quase zero e isso não for acompanhado de alterações nas soluções construtivas, nos materiais utilizados, em toda a filosofia da construção, eu vou ter soluções demasiado caras. A classe média alta e as classes que ganham mais vão poder ter casa. Das casas que estão a ser construídas, mais de 80 por cento são para esse segmento. Os edifícios de energia quase zero são obrigatórios a partir de 1 de janeiro de 2021. Projetos que comecem a ser feitos em meados do ano que vem, se entrarem em janeiro de 2021 já serão apreciados nesses moldes. O processo na construção tem tantas exigências, tem tantos inputs, que se não começamos a trabalhar isto com antecedência vamos andar a utilizar soluções híbridas e caras e a causar problemas adicionais.

Com a promoção imediata que está a ser feita pelo Estado – todos os dias saem concursos públicos de renovação, de construção - era preciso ter uma task force muito envolvida em promover alguns projetos com os elevados critérios de sustentabilidade à partida. É preciso gerar processos colaborativos de soluções para edifícios. Esse trabalho tem de ser feito em edifícios de caráter público e tem de ser feito em habitação. O Estado neste momento está a lançar, como deve e muito bem, projetos de construção e habitação, de sua responsabilidade. Está a fazê-lo a nível central e em colaboração com as autarquias, e cada um vai fazer o mais depressa que puder e com os custos mais controlados que puder e com o mínimo de preocupações de sustentabilidade porque o objetivo é ter isso depressa. As Câmaras Municipais, nas coisas que estão a tentar fazer, vão tentar ter tudo muito adiantado antes das próximas eleições [a entrevista foi realizada a 17 de setembro], e portanto não há tempo para sustentabilidade ou economia circular, e os projetos que estão a ser lançados agora ainda não precisam de ser de energia quase zero.

Os organismos públicos que eu tenho encontrado são dos mais preocupados com essas questões, mas quando chegamos à parte prática, vai como dantes porque não há tempo nem recursos para encomendar projetos com características diferentes no calendário a cumprir. Devíamos lançar alguns projetos nestes moldes. Não é só um, porque nesse caso seria aquele projeto muito querido, com muitas apresentações e muitas comunicações mas que não serve porque é um isolado, e um isolado não cria experiência prática e não é reprodutível. Fica lá para toda a gente ir visitar mas é caso único e vai sê-lo nas duas décadas seguintes. Não queríamos isso em termos de interesse nacional. O que queríamos era promover novas formas construtivas que respondam a todas essas mudanças de paradigma. Se quisermos compatibilizar economia 4.0, robótica, trabalhadores qualificados, ambiente de trabalho saudável, condições de trabalho com menos risco, é com novas formas de construir. Se queremos habitações para os portugueses, elas têm de ser mais económicas na sua exploração, têm de ser mais rápidas de construir, têm de ser mais económicas na aquisição, na renda, etc., têm de estar mais bem integradas com o urbanismo.

Falamos em cidades inteligentes mas não fazemos cidades inteligentes porque arranjar uns quantos computadores pendurados aí nos candeeiros e uns sistemas de aviso eletrónico ajuda a obter informação mas não torna as cidades inteligentes. O que torna as cidades inteligentes é o seu desenho de cidade e as suas funcionalidades, e é também a articulação, na própria infraestrutura de cidade e da organização da cidade. Tudo isso tem de ser trabalhado a esse nível. Estava a dar o exemplo dos edifícios mas devemos trabalhar os outros níveis todos. Precisamos de novas formas de criar em dimensão suficiente para termos know-how, para criar conhecimento prático de aplicação e reconhecimento pelos utilizadores e promotores

A reabilitação de fachadas é uma intervenção complexa e controversa, que obriga a preservar a autenticidade, a arquitetura, a estética, mas também há quem se queixe de fachadismo, ou seja, da preocupação de manter a fachada mas o resto do edifício não se sabe muito bem como fica. Tendo em conta estes aspetos, qual é a sua perspetiva sobre a reabilitação que se está a fazer?

A reabilitação tem incidido fundamentalmente nos centros históricos das cidades e já saiu dos centros históricos, e sobretudo com funções ligadas ao turismo ou à promoção de habitação e luxo ou de escritórios, que foi a última fase. No turismo teve os hotéis tradicionais e depois os hostels/Alojamento Local. E depois em algumas zonas mais nobres, em termos de reconhecimento de qualidade e distinção também se fez reabilitação para apartamentos de luxo, normalmente bem feita por todas as razões. Manteve-se a preservação histórica de enquadramento da parte estética do edifício e lá dentro há normalmente as melhores das condições porque na maior parte das vezes aquilo que se vende a 6500 euros/m2 deve ter tudo, portanto esse não é o problema. Depois, conforme vamos descendo na escala de valor comercial, surgem os problemas. Aí temos muita reabilitação mal feita, mesmo dentro dos centros históricos e para aplicações de turismo e de exploração de Alojamento Local ou simplesmente para venda de apartamentos a estrangeiros ou para arrendamento tradicional. Aí é sobretudo fachadismo. A obrigação dos centros históricos, nesses casos, era de facto manter as fachadas, portanto foi isso que se manteve. Por vezes nem chegou a haver reforço estrutural, e isso em Lisboa é complicado por ser uma zona de risco sísmico. Aqui no Porto não existe esse risco mas não houve reforço estrutural e em muitos casos não houve o tratamento adequado do interior do edifício, das próprias coberturas e tudo o mais. Foi tudo feito com orçamentos apertados, com rapidez de execução, com materiais muitas vezes pobres, e portanto temos aí casos de má reabilitação, embora também tenhamos casos de muito boa reabilitação. Eu diria que isso não é o mais grave. O grande problema da reabilitação dos centros históricos é que não havia dinheiro para a fazer porque as famílias portuguesas em geral não podem pagar o custo da reabilitação de edifícios em centros de cidades. Isso é verdade em Portugal, em França, nos Estados Unidos e noutro lado qualquer. Esse era um desafio impossível e o Estado era o mais falido de todos, portanto também não ia ser o Estado a fazer essa reabilitação caríssima

Seguiu-se o caminho adequado, com os equilíbrios que devia haver em muitos projetos e houve obrigação de criar habitações a custos controlados. Hoje em dia, no Porto e em Lisboa, em certas zonas que estavam degradadas e abandonadas, vive lá mais gente e foram dadas possibilidades a que isso acontecesse. Também houve outros casos de expulsão de habitantes. Foram muito enfatizados mas são casos pontuais. Não são bonitos, não são defensáveis, todos conhecemos alguns casos desses mas não são assim tão generalizados. São, no entanto, casos de polícia e como tal deviam ser tratados. Mas a maior parte da zona histórica estava em ruínas. Quando alastrou o Alojamento Local para algumas áreas, e isso aconteceu mais em Lisboa do que no Porto, finalmente os proprietários conseguiram encontrar formas de rentabilizar os imóveis. Tinha-se criado uma legislação que não permitia mexer nas rendas e portanto aquilo ia caindo em cima das pessoas, que só por falta de recursos e por adaptação a uma renda baixa é que não mudavam dali. Era uma situação inadmissível em que o Estado não interveio e devia ter intervindo com apoios. Como o Estado não tem dinheiro, não chega a tudo, nem a estas coisas chega. São opções, o dinheiro não se pode por em todo o lado. Era uma função do Estado e não o fez, deixou as pessoas viver em condições degradadas.

Não é função dos proprietários das casas fazer assistência social, portanto isso são práticas erradas e quando houve a possibilidade de os proprietários mobilizarem esses ativos para aplicações rentáveis, fizeram-no, porque antes não era possível fazê-lo. Quando passou a haver a solução de aquilo poder ter uma aplicação para Alojamento Local e houve investidores interessados, avançou-se, e com indemnizações maiores ou menores, as poucas pessoas que ainda habitavam esses prédios saíram de lá. Em alguns casos podemos admitir que foi muito bom para as pessoas, que receberam dinheiro no fim de vida que nunca esperavam receber, enquanto outros se sujeitaram a indemnizações provavelmente demasiado baixas, mas isso permitiu reabilitar muitos desses prédios. Alguns foram bem reabilitados, houve melhor financiamento, independentemente de se terem convertido em Alojamento Local ou lojas, ou ainda arrendamento tradicional, caro nessas zonas. Uns foram bem reabilitados, outros nem por isso. Normalmente, quanto menor for a dimensão do projeto, pior a qualidade da reabilitação. Mas alguma coisa foi feita. Temos muitos casos de edifícios mais pequenos com reabilitações relativamente fracas, mas é melhor alguma do que nenhuma. Aí surgem sempre as acusações de fachadismo, de que foi preciso dar uma pintadela na fachada e passado 10 anos o edifício está outra vez degradado. Se a reabilitação foi de pouca dimensão, é normal que tenha de ter uma intervenção maior mais tarde. Perdeu-se alguma oportunidade em Lisboa para reforçar a estrutura para risco sísmico. A reabilitação também já passou a algumas cidades intermédias, embora sem a mesma dimensão.

Preocupa-me mais o fachadismo nos edifícios mais recentes, a partir dos anos 60, 70 do século passado, e a grande construção de 80, 90, que também já começa a ter alguma idade. Passados 25 anos surge a necessidade de intervenções com alguma dimensão, que não se limitem a pintar paredes e substituir as janelas e caixilharias porque provavelmente precisam de intervenções maiores, mas isso depende da capacidade financeira de quem as habita, das soluções de reabilitação que houver, do custo dessas intervenções, depende de um conjunto de fatores. Eu julgo que é altura de olhar para essa reabilitação e para a necessidade de a enquadrar em termos de critérios de sustentabilidade ambiental, de eficiência energética mas também de um novo período de durabilidade do prédio, olhando para as condições de financiamento e preço dessa reabilitação. Acontece uma coisa de que não nos podemos esquecer: vamos supor que quem vive nessas habitações até já acabou de as pagar. Com que profundidade as pessoas vão fazer uma reabilitação quando entraram na reforma, têm a casa paga mas uma esperança de vida de 15 anos? Por que razão vão fazer uma reabilitação muito profunda se já não lhe veem o benefício? Temos esses problemas geracionais e outros de envelhecimento, de substituição das pessoas nos prédios, agora a ritmos diferentes, por gerações mais novas. Nós temos de olhar para isto como novos desafios. Há países que já passaram por isto e portanto têm algumas soluções experimentadas. Podemos aprender adaptando até porque os desafios societais são outros. Temos desafios novos que outras sociedades não viveram, portanto temos de ter algum cuidado de adaptação. Há gente que sabe de imobiliário, há gente que sabe de reabilitação. Temos de juntar aqui os financiadores, os exploradores ou concessionários das redes de energia, de águas e de gás, temos de juntar os bancos, temos de juntar a universidade, as construtoras e obviamente a Administração Pública porque isto tem muitos intervenientes, tem muitos interessados, muitas aproximações, e tirar coelhos da cartola não é solução. Mas se juntarmos as várias vontades encontramos soluções adequadas e flexíveis, que não nos restringem a esse fachadismo que é perigoso, e o fachadismo é mais perigoso para o futuro do que foi nos últimos anos porque este mercado esgotou. Há limites para a reabilitação dos centros históricos, que se prendem com a dimensão dos centros históricos e o negócio que pode ser contado para promover essa reabilitação. O período alto das grandes cidades de Lisboa e Porto já passou, agora estamos nas cidades médias mas não têm a mesma dimensão, portanto rapidamente equilibram. Apesar de se manter a atratibilidade do investimento imobiliário pela falta de alternativas no setor financeiro, agora também não há mais. Há muita coisa que ainda não foi feita mas o negócio imobiliário já foi feito. Já foi vendido e até já foi vendido uma ou duas vezes. Uns projetos estão na Câmara, outros estão em financiamento, e noutros casos está-se a decidir entre Alojamento Local e arrendamento. Eu julgo que ainda há metade por fazer, mas do ponto de vista da alavancagem do investimento, aí já há muito menos oportunidades, e portanto é natural que se venha a sentir menos impulso do investidor imobiliário dirigido a este investimento e a estas localizações.

Entretanto surgiram as novas oportunidades de construção nova ou de setores não habitacionais. Conforme já se esperava, neste ano de 2019 os fogos licenciados já são mais em construção nova do que em reabilitação. Até 2018 eram de reabilitação, e os fogos colocados no mercado em processo de reabilitação de edifícios chegaram a atingir 80 por cento do total, e até no pedido de licenciamento chegaram a representar 80 por cento do total. Neste momento estaremos em 60 por cento para o novo, 40 por cento para a reabilitação. A reabilitação diminuiu um pouco, está a perder ritmo e a construção nova está a aumentar, embora não vá atingir os números de 2002 e 2003. Entretanto também surgiram as residências para estudantes, as residências para idosos e os escritórios. No turismo ainda estão muitos hotéis em construção, portanto temos outras dinâmicas no setor imobiliário e teremos agora aquelas de promoção pública. Temos informação de que também está a arrancar agora a promoção de habitações a preços mais baixos, portanto o mercado para escalões de  classe média está agora a dar os primeiros passos. Julgo que alguns terrenos já terão sido adquiridos e portanto estarão a ser executados os projetos ainda, mas é capaz de vir aí uma nova dinâmica nessa área. Claro que as circunstâncias do país e internacionais ditam depois os respetivos ritmos, mas era importante que nestas dinâmicas pegássemos já nestes novos desafios. Temos de ter os jovens qualificados a trabalhar na construção, por isso as condições de trabalho têm de ser outras. Para as condições de trabalho serem outras tem de se utilizar outro equipamento, outra maquinaria, outras soluções construtivas. Os prédios têm de ser diferentes, as obras têm de ser diferentes, e há que considerar os desafios do preço. Temos de ter cuidado com isto porque a ideia é esta mas depois começa-se a fazer contas e com as soluções tradicionais não sei se conseguiremos produzir ou reabilitar os edifícios em preços que as classes médias possam pagar.

José de Matos é licenciado em Economia e pós-graduado em Recuperação de Empresas e Gestão Empresarial. É Secretário-Geral da Associação Portuguesa dos Comerciantes de Materiais de Construção desde 1985, integrando também a direção do centroHabitat – Cluster Habitat Sustentável.

Entrevista publicada na edição nº 93

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