Entrevista a Vítor Cóias

Entrevista por António Sousa Gago e João Mascarenhas Mateus

Numa edição dedicada à Evolução da Construção, Vítor Cóias e Silva, fundador do GECoRPA, Grémio do Património, aponta fragilidades à forma como são conduzidos os processos de reabilitação, decorrentes de requisitos legais que, do seu ponto de vista, não salvaguardam necessariamente o valor patrimonial das construções. Vítor Cóias e Silva insiste também na necessidade de dotar os profissionais que trabalham na área das construções antigas de competência técnica.

Iniciando a carreira profissional no âmbito do projeto e investigação de estruturas de betão armado, envolveu-se inicialmente na reabilitação desse tipo de estruturas e só posteriormente se dedicou às construções antigas. Explique-nos um pouco esse seu percurso.

Depois de regressar a Portugal como retornado e de trabalhar alguns anos como diretor de estudos na Engil, comecei a interessar-me pelos problemas frequentemente apresentados pelos diversos tipos de construções, por vezes ainda durante as obras. Quando, em 1980, saí da Engil para constituir a minha primeira empresa decidi que ela se iria dedicar não à construção nova, mas apenas à reabilitação das construções existentes, de modo a “curar” as suas anomalias e a prolongar a sua vida útil. Poucos anos mais tarde concluí que as construções antigas formavam um mundo à parte: vinham de um tempo em que o betão armado não existia e os processos e materiais construtivos eram totalmente diferentes e pouco conhecidos dos engenheiros de hoje. A reabilitação desse tipo de construções exigia por isso uma abordagem diferente, específica, e técnicos com competências apropriadas. Isso levou-me a constituir uma equipa separada que deu origem a outra empresa, a Monumenta.

Que avaliação geral nos pode dar sobre o estado atual da atividade da reabilitação em Portugal? O que se deverá fazer para a melhorar? Que iniciativas legislativas poderão ser tomadas nesse sentido? 

O Regime Excecional para a Reabilitação Urbana (Decreto-Lei n.º 53/2014, de 8 de abril) veio dispensar os promotores do cumprimento de um conjunto de exigências aplicáveis à construção nova: acessibilidades, desempenho energético e térmico, instalações de gás e de telecomunicações, que se traduzem em índices inferiores de qualidade do ponto de vista dos utentes. Quanto ao comportamento estrutural, a única exigência deste diploma é de que a resistência não seja diminuída.

Por outro lado, de acordo com o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro) as obras de alteração realizadas no interior dos edifícios estão dispensadas de comunicação prévia (uma modalidade simplificada de licenciamento), desde que não impliquem alterações estruturais. Como não é necessário projeto, quem decide se as alterações são estruturais ou são o pedreiro ou o carpinteiro chamados a realizá-las.

Nos edifícios classificados ou em zonas de proteção, as obras devem ser precedidas de um relatório prévio e objeto de um relatório final, de modo a acautelar o seu valor cultural (Decreto-Lei 140/2009, de 15 de junho). No entanto, são vagos os requisitos de qualificação a respeitar pelo técnico chamado a elaborar esses relatórios, sendo fácil ao promotor livrar-se das componentes do edifício que têm valor patrimonial, frequentemente olhadas como empecilhos.

A própria regulamentação camarária remete muitas das decisões para relatórios e pareceres assinados por engenheiros, nomeadamente em intervenções de reabilitação, incluindo edifícios classificados ou situados em zonas de proteção. Por exemplo, segundo o Regulamento do Plano Diretor Municipal de Lisboa, de 2011, um parecer de um “técnico credenciado”, atestando a inviabilidade técnica ou económica da reabilitação de um edifício, pode legitimar a sua demolição total. Mesmo na caso da Baixa Pombalina, o Regulamento do Plano de Pormenor de Salvaguarda permite ao técnico que elabora o relatório prévio classificar o estado de conservação dos imóveis e, desde que tal estado seja considerado como “Razoável” ou “Deficiente”, admite a demolição total de elementos estruturais considerados irrecuperáveis.

Tem sido referenciada a existência de situações em que, alegadamente, os relatórios são produzidos para ir ao encontro das pretensões dos promotores imobiliários, ou contêm, mesmo, falsas declarações, com prejuízo para a salvaguarda do valor cultural e/ou da segurança sísmica dos edifícios intervencionados. A somar a este ambiente de permissividade, há a quase total ausência de uma fiscalização eficaz durante a execução das obras.

As alterações legislativas que se tornam necessárias são o contraponto às falhas mencionadas, assim: nas zonas sujeitas a risco sísmico, deveria ser regulamentada a exigência de reforço estrutural dos edifícios reabilitados; igualmente, deveria ser exigida a intervenção de um engenheiro estrutural em todas as obras realizadas no interior dos edifícios, que tenham a ver com abertura de vãos ou alteração da distribuição dos espaços. Para os autores dos relatórios previstos pelo Decreto-Lei nº 140/2009 deveria ser exigida uma qualificação específica (especialização em Património Cultural Construído (PCC)).

É necessária igualmente a regulamentação da fiscalização eficaz das obras de reabilitação por técnicos adequadamente qualificados, eventualmente por entidades externas às câmaras municipais, e contratadas para o efeito.

As ordens profissionais deveriam proceder à realização de auditorias junto das entidades licenciadoras a fim de detetar irregularidades em relatórios e pareceres elaborados por engenheiros e arquitetos. Esta última questão foi objeto de uma proposta que apresentei na reunião da Assembleia de Representantes da Ordem dos Engenheiros realizada em dezembro do ano passado, para que fosse introduzida no Plano de Atividades do Conselho Diretivo Nacional para 2018 a promoção de medidas preventivas neste domínio. A proposta foi rejeitada.

Sempre lutou pela qualificação dos intervenientes da atividade da reabilitação de construções antigas. Como vê a evolução dessas questões a nível nacional?

A situação nacional quanto à qualificação dos recursos humanos da construção não é nada brilhante. Embora a generalidade dos “stakeholders” ou parceiros interessados no setor, desde os empreiteiros até ao ministério da tutela, reconheçam que existe um défice crónico de qualificação, sobretudo ao nível dos operários e dos quadros intermédios, não se veem no terreno ações relevantes nem medidas legislativas que tenham por objetivo reduzi-lo.

A luta por uma qualificação adequada na atividade da reabilitação das construções conduziu à criação e dinamização do GECoRPA - Grémio do Património, associação que criou e dirigiu durante mais de uma década. Com que objetivos foi criada essa associação e quais os principais resultados até agora alcançados?

Na criação do GECoRPA houve, à partida, dois objetivos fundamentais:

Um era o de promover a reabilitação do edificado e das infraestruturas, de modo a melhorar o seu desempenho e prolongar a sua vida útil, como alternativa a mais construção nova. Outro objetivo era o de contribuir para a qualidade na conceção, projeto e execução de todas as obras relacionadas com o património cultural, de modo a que a sua utilização seja sustentável, isto é, que no mínimo, elas não se traduzam na desvalorização da herança cultural.

Para atingir estes objetivos é necessário que as empresas possuam adequada competência técnica, traduzida na detenção de recursos humanos, organização e experiência. Para atingir estes objetivos foi feito um esforço persistente de divulgação sobre ética e boas práticas, e o GECoRPA felizmente não esteve sozinho nessa missão. O primeiro objetivo foi claramente atingido: veja-se o recente lançamento do projeto Reabilitar como Regra. O segundo nem tanto.

No âmbito da sua atividade empresarial teve, também, uma grande preocupação com as atividades de investigação e desenvolvimento, talvez pela ligação ao LNEC no período inicial da carreira. Como se encontra nos dias de hoje a ligação entre as instituições de investigação e o setor empresarial na área da reabilitação? Que benefício encontrou nessa sua ligação da atividade empresarial à investigação?

A minha passagem pelo LNEC, onde entrei como “tarefeiro” quando ainda aluno do Técnico e fui, depois, admitido com “estagiário para especialista”, foi, de facto, decisiva. Sempre pensei que fazia todo o sentido potenciar através da atividade empresarial o grande capital de conhecimento presente no LNEC e em escolas como a Universidade do Minho, a FEUP ou o IST. Conseguiram-se desenvolvimentos interessantes no domínio da melhoria do comportamento sísmico de edifícios antigos, em particular de alvenaria e madeira.

O associativismo e a defesa do património construído são duas das suas imagens de marca, estando atualmente envolvido no Fórum do Património. Porquê mais uma associação?

Não é mais uma associação, mas uma iniciativa de um conjunto de associações vocacionadas para a defesa do PCC, cujos objetivos estão plasmados na declaração final (DF) do encontro realizado na Sociedade de Geografia de Lisboa, em abril de 2017. Tais objetivos incidem sobre o próprio associativismo do Património, sobre o enquadramento legislativo e regulamentar e sobre a formação e qualificação dos profissionais e das empresas. Numa reunião recente foi decidido dar forma jurídica ao Fórum do Património, procurando agregar as 44 associações atualmente subscritoras da DF. Nesse sentido, a Comissão Organizadora do evento de 2017, constituída por sete das associações promotoras, passou a adotar a designação “Comissão Instaladora” do Fórum do Património.

Sendo um dos sócios fundadores da Sociedade Portuguesa de História da Construção e membro dos seus corpos sociais, em que aspetos entende que a História da Construção e a SPEHC podem contribuir para melhorar as intervenções na reabilitação do património?

Por definição, os edifícios antigos foram construídos noutras épocas com materiais e processos diferentes dos utilizados hoje. Por outro lado, eles chegam até nós como o resultado de sucessivas alterações, reconstruções e adições. Num caso e noutro, a história e, em particular, a sua vertente história da construção, são disciplinas imprescindíveis para a correta contextualização e anamnese, mormente quando se trata de edifícios ou conjuntos relevantes do ponto de vista cultural.

A História da Construção é uma área científica de importante relevância para a atividade da reabilitação, mas não só. É um campo de conhecimento autónomo que poderá servir e alimentar outras áreas do conhecimento e outras atividades. Como acha que a intervenção da SPEHC deve ser conduzida? 

Não é possível, aos vários atores ou parceiros interessados da área da construção, obter uma noção correta do seu papel e das suas responsabilidades sem o conhecimento dos antecedentes históricos deste setor de atividade, dos seus vícios e das suas virtudes. Por isso, uma primeira área de intervenção da SPEHC é a própria escola, e o ensino da engenharia e da arquitetura. Lembro-me que senti a falta que me fez esse conhecimento quando frequentei a curso de engenharia civil do IST. Por um lado, eu estava imerso numa cidade cujo desenho e construções vinham, em boa parte, de épocas imemoriais, em particular no centro e nos bairros históricos. A maior parte dos edifícios eram de alvenaria e madeira. Noutras construções aparecia o ferro, em formas caprichosas… No entanto, a tecnologia construtiva que me era apresentada no Técnico era quase exclusivamente o betão e as suas variantes. Creio que o estudo da história da construção é indispensável para compreender a própria dinâmica da evolução das comunidades humanas ao longo do tempo, dos seus avanços e retrocessos, e, como tal, transcende não só a reabilitação mas o próprio setor de atividade. Daí que a SPEHC deva ter um papel junto da sociedade em geral, através sobretudo da divulgação dos feitos dos construtores do passado, em particular dos portugueses, que, citando António Gedeão, andaram por todo o mundo e “fundaram cidades e vidas”. Com isso poderá ajudar a dignificar as profissões de engenheiros, arquitetos e construtores (que bem precisam).

Como vê a lacuna existente nos cursos de engenharia e de arquitetura sobre técnicas construtivas históricas, em particular sobre alvenarias, estruturas em madeira ou em terra?

Espero que essa lacuna não seja hoje tão notória como o foi no passado, nomeadamente quando frequentei o IST. Com já disse, vivia-se uma autêntica monocultura do betão armado. Os engenheiros não resistiam a “pôr uns ferrinhos” mesmo que se tratasse dum arco ou duma abóbada e os arquitetos estavam fascinados com os edifícios sobre pilotis e com os belos efeitos do béton brut.

Na DGEMN ainda se substituíam, nos edifícios antigos, telhados com estrutura de madeira por lajes e vigas de betão armado e aplicavam-se, aqui e ali, cintas e vigas de coroamento desse material. Embora me pareça que hoje os novos engenheiros e arquitetos têm um maior interesse por outras tecnologias construtivas, o betão, nas suas diversas cambiantes, continua a ser rei, apesar do impacto que tem sobre o património natural (veja-se a cratera da Secil, no Outão, dentro do Parque Natural da Arrábida, as feridas abertas na paisagem pelas pedreiras de onde se extrai a brita, a extração de areia dos rios, que depois faz falta nas praias) sobre o clima (a indústria cimenteira é, a nível mundial, uma das principais fontes de emissões), e sobre o património cultural construído (vejam os edifícios dissonantes nos centros e bairros históricos).

Hoje, ainda, a história de como se construiu no passado é quase unicamente baseada no relato da contribuição de engenheiros e arquitetos. Na sua opinião, o que teria a indústria da construção a ganhar com a investigação sobre a história da atuação dos mestres-de-obras, oficiais, operários e empresas construtoras?

Na minha opinião, os engenheiros e os arquitetos portugueses não se têm interessado o suficiente pela história da construção, que chega ao grande público sobretudo através de historiadores, historiadores da arte, arqueólogos, sociólogos e outros estudiosos sem um conhecimento suficientemente profundo das artes e das técnicas da construção, para elas serem corretamente divulgadas. Por outro lado as profissões da construção padecem, desde longa data, de um notório défice de prestígio e reconhecimento. É conhecida a ameaça “Se não estudas vais trabalhar para as obras!”. Quando, em 1956, o acesso à atividade da construção passa a ser regulado, e com exceção da classe mais baixa (obras até 1 milhão de escudos), apenas os profissionais com formação superior contam para a atribuição dos alvarás (agentes técnicos de engenharia, engenheiros e arquitetos). Os quadros intermédios e os operários não contam.

Uma das suas principais "batalhas" tem sido a qualificação de todos os agentes que atuam na construção civil e na reabilitação em Portugal. A partir do estudo da sua evolução histórica, que lições poderíamos tirar para a definição de novas estratégias de futuro?

A baixa qualificação dos recursos humanos é o “calcanhar de Aquiles” de Portugal (para citar um relatório recente da OCDE), e tem-no sido desde a revolução industrial, para não recuar mais no tempo. Da baixa qualificação individual resulta a baixa qualificação das empresas. Nestas, o défice de qualificação existe quer ao nível dos empregados, quer ao nível dos empresários, constatando-se até que, com frequência, os segundos são menos qualificados que os primeiros. A construção não é exceção, antes pelo contrário, é um dos setores da economia que mais se ressente dessa deficiência crónica, transversal a praticamente todos os agentes, desde os promotores até aos empreiteiros e aos gestores dos ativos construídos.

Olhando para a história da construção verifica-se que a evolução deste défice e as suas causas vão variando ao longo do tempo, e de modo diferente, consoante o nível profissional em questão. Assim, por exemplo, após a extinção em 1834 das corporações de operários, que assegurava um módico de qualificação nas profissões mais importantes, só partir dos anos 80 do século XIX começam a sair das escolas industriais operários qualificados e quadros intermédios em números significativos. Nos anos 90 havia, em todo o país, cursos para três dezenas de profissionais, de entre os quais se destacam, no que respeita ao setor da construção, os de serralheiro civil, estucador, canteiro, marceneiro e carpinteiro civil, e no que toca ao segmento das artes decorativas, cursos de “artífices”, como o de pintor, escultor e entalhador, entre outros. Isto permitiu que, no virar do século e nas primeiras décadas do século XX, não houvesse falta de mão-de-obra no setor da construção. Havia-a, em contrapartida, ao nível dos quadros superiores, pois os engenheiros civis saídos da Escola do Exército preocupavam-se, sobretudo, com as vagas existentes no funcionalismo público e os arquitetos saídos das escolas de Belas-Artes se dedicavam ao embelezamento das fachadas dos prédios de rendimento, ficando as grandes obras públicas entregues a engenheiros e empreiteiros estrangeiros, e a construção dos edifícios a cargo de profissionais de formação intermédia, os construtores civis saídos dos institutos industriais e os mestres-de-obras, por vezes auto promovidos.

A principal lição a tirar desta evolução é a necessidade de criar, através da regulação do setor, mecanismos que permitam adaptar em permanência, e de modo automático, a formação de profissionais dos vários níveis às necessidades da sua estrutura produtiva.

Uma outra lição é a necessidade de dar dignidade e importância às profissões da frente de trabalhos, aos operários executantes e aos quadros intermédios, nomeadamente através da valorização da presença destes profissionais nos quadros das empresas, para efeitos de avaliação da sua capacidade técnica. Se, para uma construtora ter alvará só contarem os engenheiros, por que razão há de ela contratar carpinteiros e pedreiros? Se em 1956, quando foi instituído o sistema dos alvarás, a presença de engenheiros no quadro era importante para a capacidade técnica dos empreiteiros, nada justificava que, em 2004, estes passassem a ser dispensados de demonstrar que possuem nos seus quadros operários qualificados para a execução dos trabalhos constantes do alvará.

Não espanta, por isso, que o presidente de uma Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas se queixe agora que faltam 70 mil operários!...

Finalmente, deveremos reter a lição de que no setor da construção, uma vez estabelecidos os objetivos é necessário manter o rumo ao longo do tempo, em vez de saltitar erraticamente ao sabor dos ditames ideológicos ou da pressão de sindicatos e dos lóbis.

Vítor Cóias e Silva é engenheiro civil pelo IST, e dedica-se à área da reabilitação das construções há perto de quarenta anos. Foi funcionário do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, docente universitário e projetista de estruturas. Fundou empresas que continuam ativas na área da reabilitação, desde o diagnóstico até à intervenção em obra. Juntamente com outros empresários da mesma área fundou, em 1997, o GECoRPA – Grémio do Património, uma associação de empresas e profissionais, dedicada à área da reabilitação, em geral, e à conservação do património cultural construído, em particular.

É membro do Conselho Consultivo do ICOMOS-Portugal, tem três livros publicados sobre temas relacionados com a reabilitação e é autor ou coautor de várias dezenas de artigos e comunicações da mesma área.

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