Conversas: Paulo Rocha, Ângela Nunes, João Bordado, Eduardo Júlio e Rogério Colaço
A pretexto da descarbonização no setor do betão, a Construção Magazine reuniu um conjunto de personalidades para debater o tema: Paulo Rocha (Diretor de Sustentabilidade Corporativa da CIMPOR), Ângela Nunes (Diretora da Secil responsável pelo Desenvolvimento de Produto e Processo), João Bordado, Eduardo Júlio e Rogério Colaço (Professores Catedráticos do Instituto Superior Técnico). A conversa girou em torno da redução de emissões no processo de produção do cimento e do betão mas também a jusante, durante o ciclo de vida das infraestruturas. Com o Roteiro para a Neutralidade Carbónica a entrar em força na próxima década, convidamos os leitores a saber como este setor se está a posicionar para combater as Alterações Climáticas.
Portugal atravessa um período de produção de programas de combate às Alterações Climáticas, como o Roteiro para a Neutralidade Carbónica e a adoção de estratégias europeias com vista à descarbonização da economia, como a Estratégia para a Economia Circular. Do vosso ponto de vista, qual o papel que a construção, e nomeadamente a construção no setor do betão, pode desempenhar no cumprimento destes objetivos?
Paulo Rocha (PR): O setor cimenteiro nacional participou na elaboração do roteiro europeu para uma indústria cimenteira de baixo carbono e está profundamente empenhado no roteiro de neutralidade carbónica 2050 (RNC2050) do governo português. A aposta dá-se em 3 vertentes: na mitigação ao nível da produção, na mitigação ao nível do uso e na adaptação às alterações climáticas. A mitigação na fase de produção dá-se através da eficiência energética a nível de processo, do coprocessamento que permite a substituição de combustíveis fósseis por combustíveis alternativos com frações crescentes de biomassa, da substituição do clínquer por adições ao cimento e, numa vertente mais disruptiva e de longo prazo, da captura, uso e sequestro de CO2, e de novos tipos de ligantes. A captura de CO2 é uma tecnologia ainda a provar, mas que terá pernas para andar entre 2030 e 2050, embora, numa fase inicial, se preveja que o seu custo possa ser extremamente elevado. Ao nível do uso, temos a aposta na eficiência energética dos edifícios pois esta fase representa a fatia maior das emissões de CO2. Isso implica pensar, não apenas no produto, mas nas possíveis soluções com betão, de modo a maximizar as reduções. Hoje, a utilização de betão como sumidouro de CO2 por via da sua (re)carbonatação é um tema quente da agenda do setor, estimando-se que entre 15 a 25 por cento das emissões de processo do fabrico de cimento possam vir ser reabsorvidas ao longo dos mais de 50 anos de vida útil de uma infraestrutura em betão. Além disso, temos aspetos interessantes a explorar como a refletância, devido à sua cor clara, e a redução do consumo de combustível nas autoestradas em betão, pois a maior rigidez do piso, reduz a resistência à progressão do veículo, e fundações offshore e onshore para aerogeradores. Finalmente, independentemente da mitigação e a não descurar, temos o aspeto da adaptação às alterações climáticas. Os fenómenos climáticos extremos vão tornar-se mais frequentes e intensificar-se, tendo o betão uma palavra a dizer em termos de soluções resilientes. Entre as possíveis medidas de adaptação podemos pensar na criação de infraestruturas de armazenagem de água nos períodos de cheia para ser usada nas fases de estiagem, ou, também, em soluções ao nível do reforço de infraestruturas portuárias, de transporte, defesas, diques e quebra-mares atlânticos, abrigo, proteção contra erosão costeira, entre outros.
Ângela Nunes (AN): Pessoalmente encaro o assunto nas duas perspetivas: na perspetiva do produto e da sua aplicação. O cimento é produzido com materiais muito abundantes, que existem em muitos sítios, portanto pode, de uma forma rápida, responder a estes problemas das alterações climáticas que se colocam às populações. O betão abriga-nos, não só por ser parte importante das nossas casas, mas também porque nos protege destes eventos adversos. Não são, por isso, materiais fáceis de substituir. Depois há o aspeto do fabrico do produto e das respetivas emissões de CO2. Todos sabemos que ao pegarmos em calcário, vamos descarbonatá-lo e vamos emitir. Podemos reduzir mais de um lado ou de outro mas temos sempre esse aspeto a considerar. A indústria tem feito um grande esforço a montante, desde o cimento, até jusante, às aplicações do cimento, para englobar todo este ciclo. Remontamos ao início dos anos 90, quando começámos a preocupar-nos ainda numa ótica de eficiência energética, trabalhando com vista a incorporar menos energia no produto. Nessa altura havia um único tipo de cimento, deficiente em determinadas aplicações porque não tinha o perfil otimizado. Depois recordo-me, já no final dos anos 90, da introdução dos cimentos compostos, em resposta a estas situações. A introdução das cinzas volantes, que podem conferir outras propriedades interessantes ao betão, nomeadamente mais durabilidade em meios agressivos ou maior neutralidade em situações onde a resistência não é tão importante, levou a um efeito de redução muito interessante.
Mais recentemente o paradigma tem sido muito virado para o processo, com a substituição dos combustíveis fósseis por combustíveis alternativos, das biomassas aos CDR. Há uma série de materiais que nós consumimos como combustível alternativo, com poderes caloríficos interessantes, que nos permitiram reduzir a utilização de combustíveis fósseis. Hoje as fábricas já utilizam cerca de 50 por cento de combustíveis alternativos.
João Bordado (JB): Temos trabalhado com a Secil no sentido de converter resíduos florestais e madeira em combustíveis líquidos, que ardem muito melhor. Na madeira líquida, se separarmos os açúcares que vêm da celulose, o poder calorífico ainda é mais elevado. Quanto melhor for a qualidade desse combustível, maior é a quantidade de CDR ou de outros combustíveis de baixo poder calorífico - uma fábrica de cimento para operar precisa de 4 mil a 5 mil quilocalorias e portanto é uma maneira de poder ter outros combustíveis mais fracos no conjunto.
AN: O nosso objetivo com este projeto é abandonar os combustíveis fósseis e baixar a pegada carbónica no cimento.
JB: As florestas absorvem muito bem o CO2. 90 por cento do peso das árvores das florestas vem do CO2, não do solo. Há uma série de aplicações de CO2 que vão se rimportantes no futuro, e uma delas é a produção de ureia, um fertilizante feito a partir de CO2 de amoníaco.
Eduardo Júlio (EJ): Na construção em betão, há uma série de ações que podem ser adotadas no sentido de reduzir as emissões de CO2. Uma delas consiste em substituir (parcial ou totalmente) os agregados naturais por agregados reciclados. Outra consiste em produzir um betão com as características mecânicas e de durabilidade necessárias usando uma dosagem de cimento inferior à corrente e, até, inferior aos mínimos impostos pelas normas europeias (e nacionais). Há outras abordagens mais radicais, que podem ser adotadas no sentido de reduzir as emissões, como por exemplo substituir o cimento Portland por um ligante eco-eficiente alternativo, como é o caso de alguns subprodutos industriais. Estas abordagens apresentam contudo o inconveniente de uma significativa variabilidade das suas propriedades, colocando ainda em questão a viabilidade da sua aplicação in situ.
A par da redução (do ligante) e da reciclagem (dos agregados), há ainda a possibilidade da reutilização (das estruturas), questão absolutamente essencial no momento presente, e na qual o Governo está a apostar fortemente, que consiste na mudança do paradigma da construção nova para a reabilitação do edificado existente. Com efeito, quando se aposta na reabilitação em detrimento da construção nova, isso só por si implica uma redução muito significativa de CO2. Mas a reabilitação tem de ser bem feita, ou seja, tem de se optar por valorizar a preexistência. No Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, estamos a procurar adotar boas práticas, e definimos o ‘princípio do máximo desempenho e da mínima intervenção’. Deve-se tirar o máximo proveito do que existe, daí a ‘mínima intervenção’, o que conduz igualmente ao mínimo custo, tanto económico como ambiental, mas obviamente este conceito não pode ser sinónimo de “lavar a cara aos edifícios”, tem também de dotá-los de todos os requisitos atualmente exigidos em termos de segurança - segurança estrutural, segurança contra incêndio e, ainda, em termos de conforto - conforto térmico, conforto acústico, etc, daí o ‘máximo desempenho’. Ainda neste contexto, deve haver uma preocupação muito grande em melhorar a eficiência energética, porque se a construção dos edifícios tem impacte ambiental, as emissões de CO2 durante a fase de exploração são incomparavelmente superiores. É preciso não esquecer que os edifícios correntes são projetados para um tempo de vida útil de 50 anos e, devidamente mantidos, acabam por ter uma duração muito superior.
Rogério Colaço (RC): Hoje [a entrevista realizou-se a 25 de fevereiro], o Guardian tem um artigo intitulado Concrete: The most destructive material on earth (https://www.theguardian.com/cities/2019/feb/25/concrete-the-most-destructive-material-on-earth), que merece umas palavras. Olhando para este artigo como engenheiro de materiais, fiquei a pensar que não há nenhum material técnico que seja usado pelo Homem que não tenha impacte ambiental. Todos têm muito, e os metais têm um consumo energético grande. O cimento tem uma característica adicional: em termos volúmicos é o material mais consumido pela Humanidade, e como é o mais consumido é natural que tenha mais impacto. Quem lê este artigo de forma corrida fica com a ideia de que há uma invasão de betão, que o planeta vai ficar carregado. O cimento é um material fantástico, que nos dá abrigo, e permitiu à população nos últimos 100 anos viver com condições de vida inéditas. Neste momento, a China consome metade do betão produzido no mundo todo, e mesmo assim metade ou mais de metade da população da China vive em casas de madeira. Quando esses dois terços começarem a querer ter casas em cimento, o consumo vai aumentar ainda mais. Isto é incontornável e vai acontecer nos próximos 100 anos.
As emissões vêm da componente energética e vêm do processamento do próprio material. O cimento é feito à base de calcário, o calcário é um carbonado, e para ser usado para fazer cimento temos de tirar o carbono, e isso leva-nos ao ponto que eu queria referir: por que é que nós temos um aumento do teor de CO2 na atmosfera maior do que o que tínhamos há 50 anos? De onde veio o CO2? A resposta não é tão óbvia como parece. Existe mais CO2 porque nós estamos a desenterrá-lo. O carbono que existe no nosso planeta é o mesmo de há 100 anos, mas nós há 100 anos começámos a desenterrar o carbono, essencialmente para duas coisas: para ir buscar combustíveis fósseis e para pegar em calcário para fazer cimento. Podemos reduzir o teor de calcário ou de carbono na matéria-prima de que precisamos para fazer o cimento, e depois podemos atuar a jusante, capturando o CO2. Estas linhas, neste momento, estão perfeitamente claras nas empresas nacionais e também nas europeias e americanas. Fora desta fronteira não sei, mas é preciso ver que vivemos numa casa global. Isto é um desafio que temos de ter em atenção e que teremos de ter nas próximas décadas. O consumo de cimento vai sempre aumentar. Temos de conseguir fazer um material que faça presa mas com um teor de cimento menor, com matérias sem necessidade de processamento a partir da descarbonatação do calcário. Eu penso que a situação atual é perfeitamente clara quer do lado das instituições que fazem I&D, e que têm obrigação de contribuir para resolver este problema, quer do lado das indústrias. Não existem muitos setores que tenham um problema tão grande como o cimenteiro em termos ambientais, mas o trabalho que tem vindo a ser feito e que eu acho que vai continuar a crescer é exemplar.
JB: A atuação estratégica será usar o CO2 em aplicações em que possa ser útil. Enterrar o CO2 no solo a profundidades que têm custos obriga a perfurar. Fazer injeção de CO2 no mar é muito mais avisado. Primeiro porque o mar tem um poder tampão enorme. Mil fábricas a dissolver o CO2 no mar não fazem baixar o pH de 8,2 para 8,1. O pH é extremamente estável, e injetar o CO2 no mar pode ser interessante no estímulo do crescimento de algas em recifes artificiais.
AN: Nós temos falado neste CO2 do processo cimenteiro, mas se o produto tem este impacto, também tem a chave da resolução de muitos problemas. A construção, nomeadamente de habitação, e o uso durante a vida útil é responsável por mais de 90, eu diria até 92 por cento do consumo energético global. Nós próprios na utilização das nossas casas somos os grandes emissores e temos consciência disso. O aquecimento das casas é responsável por cerca de 40 por cento das emissões. Como podemos ajudar? Na questão da eficiência energética. O betão tem inércia térmica, e se esta característica for gerida convenientemente pode levar a reduções importantes do consumo energético dos utilizadores da casa. Podemos usar materiais de isolamento com cimento, que são robustos e interessantes ou aproveitar diferenças de temperatura por bombas de calor e armazenar esse calor em betão. Há muitas tecnologias a serem desenvolvidas que nos permitem racionalizar o uso da energia por usarmos betão na construção.
Falámos de reabilitação do edificado. Convidava-vos agora a refletir sobre a reabilitação de grandes estruturas. Como enquadramos este paradigma da sustentabilidade neste contexto de gestão de ativos?
AN: Conhecemos o impacto da durabilidade das grandes infraestruturas, quer sejam estradas, barragens, etc. Uma estrada em betão tem uma manutenção muito inferior a uma estrada em betuminoso, e logo por aí a redução de custos de manutenção é brutal. Por vezes o investimento inicial até pode ser maior, mas a redução de custos, a redução do impacto no utilizador, a segurança rodoviária que proporciona são exemplos compensadores. Também as barragens são obras onde não se pode intervir com muita facilidade. Uma ponte em betão pode ser perfeitamente reutilizável. Chegou ao fim de vida mas pode ser reforçada e temos exemplos, onde passamos com frequência, de pontes que foram completamente renovadas e estão em serviço. Mesmo atingindo o limite da sua vida útil continuam em serviço por via de uma nova vida que foi dada ao material. Normalmente a sustentabilidade passa pela durabilidade da solução, porque uma solução que é renovada de 2 em 2 ou de 5 em 5 anos acaba por ser pouco sustentável, quer sob o ponto de vista económico quer sob o ponto de vista da utilização, mas também sob o ponto de vista ambiental.
Quando as estruturas foram projetadas provavelmente ainda não havia esse tipo de abordagem…
AN: Mas é possível pegar numa ponte de betão e dar-lhe uma nova vida útil a partir de um reforço estrutural, acontecendo o mesmo em muitas outras estruturas.
PR: Totalmente de acordo. Tem que se olhar com muita atenção para aspectos como a monitorização, inspeção, manutenção e reforço das estruturas mais antigas adaptando-as de forma a evitar problemas futuros. Apesar das limitações orçamentais, é crucial canalizar verbas para o efeito, senão os riscos serão enormes. Temos neste momento algumas estruturas em betão com mais de 60 anos, portanto, a capacidade de lhes dar esta nova vida é fundamental.
EJ: Quando as pontes foram feitas, há décadas, a durabilidade não era uma preocupação. Hoje em dia, quando se projeta uma ponte, ou qualquer outro tipo de estrutura de betão armado ou pré-esforçado, além de assegurar a sua segurança face a um conjunto de eventos extremos (como por exemplo a ação dos sismos), há que assegurar o seu adequado desempenho em serviço (isto é, para as solicitações do dia a dia) e há que assegurar a sua durabilidade, i.e., garantir que durante o seu tempo de vida útil (que nas pontes e infraestruturas importantes é de 100 anos ou mais) apenas são necessárias intervenções de manutenção.
Relativamente à reabilitação de estruturas, em geral, e das pontes, em particular, gostaria de dizer que, em Portugal, começámos por ter uma abordagem que consistia em intervenções muito intrusivas e, assim, com um impacto ambiental e económico muito significativo. Isto devia-se, em parte, ao facto de os regulamentos, e de o próprio ensino da engenharia, em particular na área das estruturas, estarem orientados para a construção nova. As primeiras ‘cadeiras’ de opção sobre reabilitação foram criadas há cerca de 20 anos. O Regulamento de Estruturas de Betão Armado e Pré-esforçado (REBAP), dos anos 1980, e o regulamento europeu equivalente, o Eurocódigo 2, dos anos 1990 e com sucessivas atualizações, estavam direcionados para a construção nova. O código modelo da Federação Internacional do Betão (fib), uma referência nesta área, nas versões de 1978 e 1990 estava direcionado para a construção nova. A reabilitação só passa a ser abordada na versão de 2010. E apenas na versão de 2020, atualmente em preparação, obra nova e reabilitação serão abordadas com equidade. Por estas razões, quando era analisada uma estrutura existente, o estudo era invariavelmente conduzido com excessivo conservadorismo e, portanto, as intervenções eram sempre muito impactantes e muito caras. Mas é sempre pior demolir uma estrutura, porque isso tem um enorme impacto ambiental, do que reabilitá-la. Quando me comecei a interessar pela área da reabilitação, em meados dos anos 1990, não se falava do tema em Portugal. Quando mais tarde se começou a falar, havia a ideia generalizada de que reabilitar era mais caro do que construir novo. Hoje em dia acho que este equívoco está ultrapassado. Reabilitar deve ser mais barato, não só do ponto de vista ambiental, como do ponto de vista económico. Isto é possível porque, quando se projeta uma estrutura nova, há um conjunto de incertezas, ao passo que, para as estruturas existentes, o material, as suas propriedades mecânicas e a geometria dos elementos estruturais podem ser caracterizadas. Assim, para assegurarmos o mesmo nível de segurança estrutural, podemos usar uma abordagem menos conservadora e muito menos impactante. Também é possível trabalhar ao nível do tempo de vida útil da estrutura. Podemos fazer intervenções apontando para um tempo de vida útil inferior e/ou limitando as solicitações a que as estruturas podem estar sujeitas. Estou a lembrar-me da ponte de Vila Nova da Barquinha que esteve encerrada por falta de condições de segurança e a autarquia não tinha dinheiro para adjudicar a obra de reabilitação da ponte. O projetista acabou por adotar uma intervenção minimalista, restringindo os veículos pesados de atravessar a ponte, tendo-se colocado um pórtico dos dois lados da ponte, para esse efeito, e fez-se uma intervenção cirúrgica, do ponto de vista estrutural, minimizando o impacto económico e ambiental, permitindo resolver o problema com que a população se via confrontada com o encerramento da ponte. É sempre possível definir abordagens pouco impactantes do ponto de vista económico e do ponto de vista ambiental.
PR: As estruturas projetadas há muitos anos, pontes, viadutos, estradas, túneis, diques e molhes de proteção, barragens, entre outros, tiveram por base parâmetros de cálculo que, porventura, hoje já não se verificam. O tráfego triplicou, a intensificação dos fenómenos climáticos extremos (e.g., caudais dos rios, ciclos de carga e ciclos térmicos, combinações de cargas, etc.) aumentou as solicitações sobre as estruturas para além dos valores para que foram concebidas, o que implica uma necessidade de monitorização acrescida e de intervenções de reabilitação, dando-lhes uma nova vida e adequando-as a este novo normal.
EJ: Já há uma série de técnicas e de materiais novos para reforço de estruturas que fazem com que seja possível reabilitá-las para resistirem a essas novas solicitações e de forma muito pouco intrusiva. Os estudos que indicam que as estruturas têm a capacidade de absorver 25 por cento do CO2 estão calculados para uma determinada vida útil mas, ao prolongar essa vida útil, esses valores necessariamente serão superiores.
JB: Há soluções de reabilitação com estruturas muito leves. Usam-se por exemplo chapas de material compósito simplesmente aparafusadas. Há uma empresa em Elvas que fabrica chapas e exporta para todo o mundo. O único problema é que essas chapas contêm fibra de vidro ou de carbono mas as resinas por enquanto ainda têm cerca de 95 por cento de materiais que vêm do petróleo. Nós temos um projeto com essa firma que consiste em fazer umas resinas que contêm 95 por cento de materiais que vêm da natureza e não do petróleo.
RC: A ideia que eu tenho é que na Europa o consumo de cimento per capita anda à volta de 300 ou 400 kg/ano, e Portugal na década de 90 ultrapassou a tonelada/ano per capita. Chegou a consumir 1200 kg de cimento, e isso aconteceu porque estávamos numa situação de esforço de desenvolvimento das nossas infraestruturas. Depois da fase de construção, a fase de reabilitação é importante, e é predominante. Depois de termos as coisas a funcionar temos de as manter a funcionar, sendo que naturalmente o impacto sobre o consumo tem de ser menor e tem de haver soluções para isso.
Qual é o estado-da-arte dos novos materiais de construção, e o que se pode dizer da sua aceitação pelo mercado?
RC: Dividindo em fases de consumo intensivo e depois em fases de manutenção, os materiais têm valores diferentes, têm especificidades e diferenciações relativamente à aplicação. Eu penso que quem produz esses materiais está atento a esse problema e tem feito o esforço que importa fazer para que sejam desenvolvidos. No início, tínhamos começado esta conversa com o teor de CO2 incorporado no cimento. Tendo em conta os constrangimentos e o impacto que a produção de cimento tem nas emissões de CO2, a necessidade de novos materiais ligantes que funcionem de maneira semelhante à prática da construção atual é uma temática que está na ordem do dia. As empresas e o setor cimenteiro terão de olhar para isso, e vão olhar nos próximos anos. As grandes empresas estão a investir em novos materiais, quer ligantes hidráulicos quer materiais compósitos, e isso será uma linha que terá de ser prosseguida. Não há maneira de reduzir o teor de CO2 na produção do cimento atual que não seja alterá-lo quimicamente.
Nessa matéria existe uma cooperação forte entre a academia e a indústria?
RC: Eu penso que sim.
EJ: Em relação aos novos materiais cimentícios, e falando de novos betões, gostaria de retomar o que disse há pouco sobre as pontes. Existem algumas extremamente elegantes, que depois se revelaram um desastre em termos de durabilidade, isto porque à data só se tinha em atenção o comportamento mecânico do betão. Atualmente nós abordamos a questão segundo três vetores diferentes, ou, traduzindo-a numa fração, em numerador temos o desempenho mecânico, que multiplica pela durabilidade, e em denominador temos o impacte ambiental, segundo uma análise do ciclo de vida. Acresce que, hoje em dia, há uma panóplia de cimentos que até há pouco tempo não havia, o que permite formular uma quase infindável quantidade de betões. Hoje em dia conseguimos produzir betões com resistências mecânicas equivalentes às do aço, embora haja requisitos na sua produção que impedem a sua utilização na construção corrente. Conseguimos também, em termos de densidade, produzir a ‘Jangada de Pedra de Saramago’ (um betão que flutua, por ter uma densidade inferior à da água). Há pois um leque muito grande de possibilidades quando se fala de betão. No nosso grupo de investigação temos uma linha dedicada à questão da sustentabilidade, e estamos a desenvolver há bastante tempo uma nova abordagem de estruturas de betão, em que tentamos resolver o problema da durabilidade com um betão de ultra-elevado desempenho aplicado apenas no recobrimento, que é a camada de betão que primeiro sofre carbonatação, isto é, a camada que reage com o CO2, fenómeno ao qual está associado uma diminuição do pH, o que faz com que, ao atingir as armaduras, dissolva a camada de proteção, iniciando-se a corrosão. E no interior, usamos um betão com baixo teor de ligante e com incorporação de resíduos de construção e demolição. Conseguimos assim um desempenho em termos energéticos ou de emissões de CO2 muitíssimo interessante. Em termos de novos materiais, hoje o betão cobre tudo aquilo que a imaginação da indústria possa incluir, e há realmente uma ligação fortíssima entre a indústria e as universidades e centros de investigação.
Relativamente a materiais não cimentícios, e sobretudo na lógica da reabilitação, há uma série de materiais e métodos de reforço estrutural, inclusive produzidos em território nacional, dos quais se destacam os polímeros reforçados com fibras, porque permitem prolongar a vida útil de estruturas existentes com intervenções muito ligeiras, quer do ponto de vista ambiental quer do ponto de vista económico.
PR: No desenvolvimento dos nossos produtos, há três vias de atuação. Ao nível da produção, através do controlo do teor em CO2 dos materiais que fabricamos, ao nível da fase de uso, através do desenvolvimento de produtos destinados ao aumento da eficiência térmica dos edifícios e, ainda, ao nível do final da vida útil, por via da reciclagem. A I&D tem sido acelerada no setor e há vários projetos em curso ao nível dos materiais. Entre os mais importantes, está a estudar-se a possibilidade de reduzir as emissões de processo do cimento produzido, a possibilidade de materiais cimentícios desenvolverem presa através da absorção de CO2, a possibilidade de se converter o CO2 capturado em processos industriais para a produção de fibras de carbono destinadas a elemento de reforço do betão em alternativa a alguns dos elementos de reforço tipicamente utilizados, betões que se autorregenerem eliminando fissuras que se desenvolvam com a idade, elementos de mudança de fase (resinas, polímeros) para incorporar no betão / argamassas que ao liquefazerem-se, por efeito do calor, absorvam esse calor promovendo a armazenagem / produção de energia (edifícios, pavimentos, etc.), para vários fins, ou o isolamento térmico. Materiais compósitos com base cimentícia constituirão, seguramente, uma solução interessante e eficaz para lidar com questões de isolamento e inércia térmicos, conforto, etc. quer ao nível de construção nova ou reabilitação.
AN: A questão da economia circular é importante. Hoje na indústria cimenteira, já incorporamos cerca de 10 por cento de materiais secundários, que nós chamamos de matérias-primas secundárias. Falo de RCD e resíduos industriais, como as cinzas provenientes das centrais térmicas. Há uma série de materiais que nos chegam e permitem substituir as nossas matérias-primas, isto é, evitam a exploração da nossa pedreira e isto é interessante porque uma parte destes materiais já sofreu processos térmicos e ao ter sofrido processos térmicos já não traz CO2 incorporado. É uma forma de não termos que descarbonatar. É muito interessante e isto é uma tendência que vai ter cada vez mais expressão de certeza. É uma questão logística de implementação deste sistema. Nós estamos já a fazer nas nossas pedreiras a receção destes materiais e a incorporá-los nos nossos agregados, em percentagem pequena. Introduzimos estes materiais em pequenas quantidades que vão sendo diluídas sem prejuízo da qualidade global, devidamente comprovada com testes de controlo. Esta tendência, esperemos, vai ser cada vez maior, não só ao nível da produção de cimento mas também de agregados. Se isto for feito diretamente no betão seria mais difícil de controlar. É preferível ir à fonte, controlar a matéria-prima específica, neste caso agregados. Relativamente à parte dos novos materiais desenvolvidos a partir de uma base cimentícia, há aqui duas ou três questões. Temos estado a falar de novas funcionalidades. Esta é de facto uma das nossas preocupações da indústria e da academia; a introdução de novas funcionalidades nestes materiais, e isto também é descarbonizar, porque a partir do momento em que damos mais funcionalidades a um produto, evitamos a produção de outros. Estamos pois a trabalhar muito na sensorização, ou seja, na incorporação no material das tais novas funcionalidades. O betão tem possibilidade de aquecer e de arrefecer o ambiente, e de incorporar tecnologia eletrónica. Nós hoje já temos argamassas que se forem usadas no revestimento interior de uma habitação vão conseguir baixar a temperatura sem recurso a ar condicionado. Temos betões que alteram a cor de modo a tornarem-se mais eficientes sob o ponto de vista energético, isto é, alteram a cor por exemplo em função da intensidade da radiação. Há outro aspeto importante que é a digitalização. O betão é um material com uma plasticidade tal que permite a utilização desta nova tecnologia. A impressão 3D vai-nos permitir entrar numa nova panóplia em termos de acabamentos, cores, formas, e também na otimização do processo construtivo, portanto estruturas mais sustentáveis.
Existe, desde 2008, um Plano de Prevenção e Gestão dos Resíduos de Construção e Demolição. Os pressupostos deste plano estão a ser cumpridos? Já estaremos a ultrapassá-los?
PR: As estatísticas em termos de RCD não coincidem de forma alguma com a realidade.
por estatísticas refere-se à produção ou à incorporação de RCD?
PR: Estou a falar dos RCD gerados. O que é gerado será seguramente superior ao que é declarado, por várias razões bem conhecidas. Os centros de recolha e triagem de RCD, que seriam o melhor destino, não estão a funcionar como deviam, muitos dos RCD “desaparecem na paisagem”, para fugir aos encargos, e a fiscalização não atua, outros são usados internamente sem contabilização. É, também, uma pena que muitos do RCD vão parar a aterro quando poderiam ser reciclados em mais de 98%, como acontece noutros países.
AN: Os próprios aterros de momento querem os resíduos porque estes permitem consolidar camadas de depósito evitando problemas como instabilidade e lixiviação.
JB: E hoje em dia já se fazem aterros que têm de garantir estanquicidade durante 300 anos.
AN: Nós temos canais próprios, isto é, temos uma empresa, a AVE, que se dedica a desenvolver este mercado, tentando recolher esses materiais, encaminhando-os para as várias unidades. Esta atividade é algo em que temos interesse porque é uma forma de poupar matéria-prima e de introduzir materiais completamente ou parcialmente descarbonatados, o que nos evitará emissões no processo.
PR: Poderia, também, ser explorado o facto de esses resíduos, ou melhor, essas matérias-primas, depois de britadas, para serem utilizadas como agregados artificiais no betão, passarem a ter uma superfície específica maior que lhes permite, por via da carbonatação, de uma forma natural ou forçada, absorver CO2. Seria uma forma se capturar de CO2, isto é, de sequestro a título definitivo. Existe, aliás, um projeto europeu de I&D (H2020) nesse domínio.
RC: Pode fazer-se uma comparação com a indústria do aço. O aço há 50 anos era todo produzido a partir do minério do óxido, e neste momento é tudo sucata. Não tenho números exatos mas diria que o aço produzido a partir do minério deve ser menos de 30 por cento. Portanto, 70 por cento resulta de reciclagens de sucata, e a indústria do cimento pode caminhar num sentido semelhante. A sucata de aço tem valores diferenciados de acordo com a sua qualidade. No caso dos RCD, essa valorização e escalonamento ainda não existe.
PR: Os códigos de construção terão um papel importante a desempenhar. Futuramente, os edifícios serão concebidos de forma a facilitar a separação / reciclagem dos materiais na fase de demolição. É fundamental, se quisermos aumentar os níveis de reciclagem dos RCD.
JB: Eu creio que vai depender do estado em que está o material. A sucata de aço hoje em dia vale entre 350 e 370 euros por tonelada. No entanto, se formos comprar um barco velho, custa só 290. E ainda tem de ser tudo desmantelado e há muito trabalho pela frente para conseguir tirar o ferro de lá.
Estamos a falar dos processos mas há também a questão do transporte, que emitirá mais ou menos consoante o método escolhido – rodovia, ferrovia. Como estamos atualmente a esse nível?
JB: Metade dos carros que vão ser comprados para o Estado têm de ser elétricos. A origem da eletricidade hoje em dia já é bastante dos aerogeradores e sistemas fotovoltaicos. A central fotovoltaica da Amareleja, se fosse construída hoje custaria cerca de um terço, e os módulos fotovoltaicos são mais eficientes em termos de produção de energia elétrica. Dantes produzia-se cerca de 200 watts por metro quadrado e hoje já se produz 700 watts. Não só os sistemas são mais eficientes como são mais baratos. As centrais térmicas, nomeadamente a central térmica do Pêgo e a de Sines, que funcionam a carvão, vão acabar até 2035. A partir dessa data vai deixar de haver centrais térmicas a carvão na Europa. A produção de energia elétrica vai passar a ser sobretudo de energia renovável. É natural que os transportes, mesmo os camiões, passem para elétricos.
PR: A Holanda tem um projeto nacional de aceleração do transporte elétrico, inclusive, industrial. Não é ainda o nosso caso, mas lá chegaremos. O abastecimento das nossas matérias-primas, excluindo os combustíveis, é basicamente local, isto é, na pedreira da fábrica ou num raio de ação muito curto. Os nossos produtos, excluindo a exportação, que se faz por via marítima, percorrem, também, distâncias curtas. A rodovia, para um raio de 50 a 60 km é a solução mais eficiente para o transporte de cimento. Para o betão-pronto a distância é muito mais curta. Para distâncias acima de 200 a 300 km, o caminho-de-ferro é, claramente, o meio mais económico. A nossa empresa usa uma rede de entrepostos / terminais ligados por caminho-de-ferro que, curiosamente, até já foi mais desenvolvida no passado. É uma solução ambientalmente interessante. Quando pensamos em transporte via marítima, é possível movimentar grandes volumes de clínquer e cimento e transportá-los a grandes distâncias de uma forma competitiva. Como cerca de 50% da nossa produção é escoada para outros países, a via marítima é a forma eficaz de o fazer.
Entrevista publicada na secção "Conversas" da edição nº 90 da Construção Magazine
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